Domingo XVIII do Tempo Comum

Ano B

A mão que dá o pão também é pão

Pão é mais que pão! Para lá de todas as mesas e de todas as vidas, o importante nem é o pão mas o sabor que tem o pão naquele dia, naquela hora, naquele instante. Pão sabe a pão dizem todos. Não! Pão não sabe a pão. O pão tem o sabor do fel e do vinagre, do sal das lágrimas caídas, da dor dos gemidos que se calam como migalhas esquecidas. O pão tem sabor a riso de criança, a histórias de antigas noites de inverno à lareira. Tem sabor a mel, a beijos guardados nos bigodes do avô cheirando a fumo de cigarro e a carinhos de avó, a ralhete de mãe, a manteiga rasteada com os dedos. Pão não é só pão, é mais que pão, é vida, é tudo o que se vive e não se esquece e tudo o que se esquece para viver.

LEITURA I           Ex 16, 2-4.12-15

Naqueles dias, toda a comunidade dos filhos de Israel começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão. Disseram-lhes os filhos de Israel: «Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egito, quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne e comíamos pão até nos saciarmos. Trouxestes-nos a este deserto, para deixar morrer à fome toda esta multidão». Então o Senhor disse a Moisés: «Vou fazer que chova para vós pão do céu. O povo sairá para apanhar a quantidade necessária para cada dia. Vou assim pô-lo à prova, para ver se segue ou não a minha lei. Eu ouvi as murmurações dos filhos de Israel. Vai dizer-lhes: ‘Ao cair da noite comereis carne e de manhã saciar-vos-eis de pão. Então reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus’». Nessa tarde apareceram codornizes,  que cobriram o acampamento, e na manhã seguinte havia uma camada de orvalho  em volta do acampamento. Quando essa camada de orvalho se evaporou, apareceu à superfície do deserto uma substância granulosa, fina como a geada sobre a terra. Quando a viram, os filhos de Israel perguntaram uns aos outros: «Man-hu?», quer dizer: «Que é isto?», pois não sabiam o que era. Disse-lhes então Moisés: «É o pão que o Senhor vos dá em alimento».

No meio do deserto os israelitas deixam-se vencer pela murmuração e revoltam-se contra Deus, porque sentem fome. Deus, que não quer a morte do seu povo, mas levá-lo à terra da promessa, dá-lhes o Maná, pão caído do céu, para que se alimentem.

Salmo Responsorial     Sl 77 (78), 3.4bc.23-24.25.54 (R. 24b )

O salmo 77 faz o louvor do Senhor, Deus de Israel, por tudo quanto ele fez a favor do seu povo ao longo da história, sem esquecer que lhes deu o Maná, o pão do céu.

LEITURA II         Ef 4, 17.20-24

Irmãos: Eis o que vos digo e aconselho em nome do Senhor: Não torneis a proceder como os pagãos, que vivem na futilidade dos seus pensamentos. Não foi assim que aprendestes a conhecer a Cristo, se é que d’Ele ouvistes pregar e sobre Ele fostes instruídos, conforme a verdade que está em Jesus. É necessário abandonar a vida de outrora e pôr de parte o homem velho,  corrompido por desejos enganadores. Renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus na justiça e santidade verdadeiras.

A murmuração na comunidade de Éfeso, por causa das divisões e discórdias ali instaladas por doutrinas estranhas à fé cristã, são motivo para Paulo chamar os crentes a não agir como pagãos, mas como seres espirituais, porque o são desde o batismo em que se revestiram de Cristo, o homem novo.

EVANGELHO    Jo 6, 24-35

Naquele tempo, quando a multidão viu  que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago, subiram todos para as barcas  e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus. Ao encontrá-l’O no outro lado do mar, disseram-Lhe: «Mestre, quando chegaste aqui?». Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: vós procurais-Me, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados. Trabalhai, não tanto pela comida que se perde, mas pelo alimento que dura até à vida eterna e que o Filho do homem vos dará. A Ele é que o Pai, o próprio Deus, marcou com o seu selo». Disseram-Lhe então: «Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?». Respondeu-lhes Jesus: «A obra de Deus  consiste em acreditar n’Aquele que Ele enviou». Disseram-Lhe eles: «Que milagres fazes Tu,  para que nós vejamos e acreditemos em Ti? Que obra realizas? No deserto os nossos pais comeram o maná, conforme está escrito: ‘Deu-lhes a comer um pão que veio do Céu’». Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu; meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu. O pão de Deus é o que desce do Céu  para dar a vida ao mundo». Disseram-Lhe eles: «Senhor, dá-nos sempre desse pão». Jesus respondeu-lhes: «Eu sou o pão da vida: quem vem a Mim nunca mais terá fome, quem acredita em Mim nunca mais terá sede».

O verdadeiro pão do céu é Jesus, mas é difícil reconhecer que é ele aquele que o Pai enviou. Jesus sabe que é difícil, porque os seus contemporâneos não estão despertos para o reconhecer como o Messias. A mesma dificuldade permanece hoje, para muitos, pois reconhecer Jesus presente na Eucaristia exige a mesma fé que ele propôs à multidão naquele dia em Cafarnaúm.

Reflexão da Palavra

A narração do livro do Êxodo diz que Deus libertou com o seu poder o povo escravo no Egito, através de Moisés o seu enviado. No diálogo vocacional de Moisés Deus revela “eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor… conheço os seus sofrimentos” (Ex 3, 7), mais à frente, num novo relato vocacional, Deus reafirma “fui eu que ouvi os gemidos dos filhos de Israel” (Ex 6, 5). Agora, no meio do deserto, Deus continua a ouvir, mas já não ouve clamor nem gemidos, agora, o Senhor, ouve o seu povo a murmurar “Eu ouvi as murmurações dos filhos de Israel”. Murmurar contra Moisés e Aarão, enviados do Senhor, é o mesmo que murmurar contra Deus que os enviou, como o próprio Moisés lhes diz “não são contra nós as vossas murmurações, mas contra o Senhor” (v.8).

Os clamores e gemidos brotam do peso do trabalho escravo, na construção das cidades-armazém de Pitom e Ramessés. As murmurações brotam da fome e da aridez do deserto. De acordo com as circunstâncias a liberdade perde ou ganha valor. O bem supremo da liberdade, dom com que Deus criou o homem, curva-se diante da fome e da sede, das necessidades básicas do homem. É também por causa da satisfação destas necessidades que facilmente se vende a liberdade.

No deserto, tomados pelo medo da fome, o veneno infiltra-se pelos ouvidos subvertendo as intenções de Deus e de Moisés, foi “para deixar morrer à fome toda esta multidão” que nos tiraram do Egito. Mas Esta não era a intenção de Deus. O mal infiltra-se e murmura veneno na calada da noite porque falta fé e confiança a este povo. Deus não muda as suas intenções ao sabor das circunstâncias como fazem os homens.

Deus não se deixa vencer pela maldade e subversão dos homens e continua o seu projeto, realizando gestos que façam entender ao seu povo que ele é o Senhor e não há outro e foi para os conduzir à terra prometida que os fez avançar pelo deserto. Então Deus diz e cumpre o que diz, “vou fazer que chova para vós pão do céu”, “Ao cair da noite comereis carne e de manhã saciar-vos-eis de pão” e, desta forma “reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus”, e assim aconteceu, dos céus veio “o pão que o Senhor vos dá em alimento”.

O alimento que vem do céu é simultaneamente um dom de Deus para a fome do seu povo e uma prova. Será o povo capaz de reconhecer, dia após dia, que o alimento que lhes cai literalmente nas mãos vem de Deus e que só Deus é o Senhor e não há outro, para obedecer incondicionalmente à sua lei? É este o grande desafio.

O salmo 77 é uma reflexão do salmista sobre a história da salvação onde se conta, entre outras coisas, a rebeldia de um povo que esquece continuamente tudo o que o Senhor faz por eles, particularmente na libertação do Egito, a passagem do Mar Vermelho, a travessia do deserto, o Maná, a chegada a Canaam e a conquista da terra prometida. A intenção do autor é clara, para que as novas gerações não sejam “como os seus pais, uma geração rebelde e desobediente, uma raça de coração inconstante”, mas conhecendo o que Deus fez e faz “pusessem em Deus a sua confiança, não esquecessem as suas obras e obedecessem aos seus mandamentos”.

Na segunda leitura, sequência do texto do domingo passado da carta aos efésios, Paulo insiste para que os crentes não se deixem seduzir de novo pela forma de vida que tinham antes de abraçarem a fé, como aconteceu com os israelitas na saída do Egito, que em vez de olhar para a frente, para a terra da liberdade desejam regressar atrás, à escravidão, só por causa das panelas de carne.

Como o povo do deserto, também na comunidade de Éfeso se pratica a murmuração. A divisão entre eles leva-os a murmurar uns contra os outros. Paulo insiste com eles “não torneis, diz Paulo, a proceder como os pagãos, que vivem na futilidade dos seus pensamentos”. E carateriza os pagãos como pessoas ignorantes e, por causa da ignorância vivem de mente vazia, longe de Deus, duros de coração, insensíveis e libertinos, capazes de “praticar toda a espécie de impureza”. É a vida do “homem velho, corrompido por desejos enganadores”.

Para os que encontraram Cristo não há um caminho de retrocesso. Os que se despiram do homem velho, renovaram-se no Espírito e revestiram-se do homem novo e pertencem a Cristo, por isso, permanecem em Cristo. Vivem as dificuldades do tempo presente, mas não desanimam como se a felicidade estivesse na vida anterior à fé. Os pagãos não, esses vivem na futilidade, ainda assim, há esperança para eles, pois a ignorância vence-se com o evangelho.

O evangelho de João, depois da multiplicação dos pães coloca Jesus sozinho no monte e os discípulos no barco em direção a Cafarnaúm, numa viagem noturna com vento contrário e águas agitadas. No meio da noite Jesus aparece a caminhar sobre as águas.

Há pormenores interessantes no início do texto: chegam a terra logo que Jesus entra na barca, só no dia seguinte a multidão dá conta de que Jesus não entrou na barca, não sabem como é que Jesus chegou a Cafarnaúm, a multidão procura Jesus mas, ao contrário do texto anterior em que João dizia “seguia-o uma grande multidão, porque presenciavam os sinais miraculosos que Jesus realizava”, agora Jesus diz que o procuram “não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados”.

Começa neste domingo um diálogo difícil entre Jesus e a multidão. O texto vai ainda dar-nos a conhecer uma multidão de gente a murmurar contra Jesus por causa da sua doutrina sobre o pão da vida “puseram-se a murmurar contra ele” (v. 41), ao que Jesus contesta “não murmureis contra mim” (v. 43).

O povo, surpreendido, questiona Jesus sobre o modo como terá chegado ali, sem que ninguém tenha dado conta. Os que procuram Jesus estão permanentemente a ser surpreendidos até que cheguem a conhecer quem é Jesus, caso contrário procuram como quem anda de noite. A resposta de Jesus desvia a atenção do ponto em que se encontra quem o procura e revela o ponto aonde devem chegar. Estão ao nível da “comida que se perde” e devem chegar a desejar o “alimento que dura até à vida eterna” e que só “o Filho do homem vos dará” e vai dar.

Aqueles que parecem não ter percebido o gesto de Jesus ao repartir o pão, agora dão sinais de entender que, “o alimento que permanece até à vida eterna”, não é fruto do trabalho e não se compra com dinheiro, como questionavam Filipe e André no passado domingo. Este alimento é “obra de Deus” por isso a multidão pergunta, que tipo de esforço é necessário fazer para “realizar a obra de Deus”. Para receber o “alimento que permanece” é necessário “acreditar n’Aquele que Ele (o Pai) enviou”, diz Jesus.

Perante a resposta a multidão questiona o próprio Jesus colocando em confronto o que Jesus faz com o que fez Deus no deserto por meio de Moisés, “Que obra realizas?”, é que no deserto Deus “deu-lhes a comer um pão que veio do Céu”. O confronto é, então, aproveitado por Jesus para atrair a multidão a um patamar mais elevado, mais seguro, mas também mais exigente do ponto de vista da fé, “em verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu; meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu. O pão de Deus é o que desce do Céu para dar a vida ao mundo

O pão do deserto, o maná, foi importante para aquele momento, mas não era o verdadeiro pão do céu, o verdadeiro pão é dado agora, a estes que falam com Jesus, por isso precisam de acreditar que Jesus vem de Deus e faz as obras de Deus. Se não acreditam também não conseguem ver que Jesus é “o pão que desce do céu para dar a vida ao mundo”.

A resposta final é correta e se o texto terminasse aqui estaríamos na serenidade da fé. A resposta de Jesus induz isso mesmo, o pão que pedis está aqui ao vosso alcance, “Eu sou o pão da vida: quem vem a Mim nunca mais terá fome, quem acredita em Mim nunca mais terá sede”. Mas o texto não termina aqui e no seguimento há mais caminho a fazer para chegar à fé no pão que desce do céu, como veremos nos próximos domingos.

Meditação da Palavra

Reconhecer Jesus como “o Pão que desceu do céu”, “o Pão da vida”, o “alimento que dura até à vida eterna”, não é fácil, exige um caminho, um processo e um esforço para chegar à fé. É mais fácil murmurar, levantar suspeitas, que é o mesmo que desconfiar, do que aceitar que Deus é bom e nos dá o melhor dele mesmo que é sempre mais do que nós podemos alguma vez esperar.

Diante das adversidades de um povo é difícil acreditar que Deus é bom, que escuta o clamor do seu povo e desce para o libertar do trabalho escravo. Mesmo depois da libertação, é mais fácil pensar que Deus não desistiu do castigo e lhes quer dar a morte no deserto e que a fome não é apenas uma circunstância passageira através da qual hão de chegar à liberdade plena, do que acreditar que Deus pode mandar descer pão do céu para saciar a fome do seu povo.

A murmuração faz crer que Deus não é bom, nem justo, nem misericordioso, mas vingativo e castigador, por isso, era melhor ter ficado no Egito onde se morria, mas com a barriga cheia. Moisés revela ao povo que o Senhor lhes dá um alimento mais importante que a carne do Egito e pelo qual não têm que pagar com a liberdade, “é o pão que o Senhor vos dá em alimento”, é gratuito e é para todos.

O salmo recorda que a verdade de Deus misericordioso, que faz descer o pão do céu, deve ser transmitida de geração em geração, para que os filhos não se tornem como os pais, murmuradores contra Deus, mas aceitem na fé o dom que, de muitas maneiras, Deus faz de si mesmo, “mandou-lhes comida com abundância e introduziu-os na sua terra santa, na montanha que a sua direita conquistou”. 

A murmuração é um veneno que impede reconhecer o dom de Deus e aquele que ele enviou, porque nasce de um pensamento fútil, próprio dos pagãos, do “homem velho, corrompido por desejos enganadores”. Para reconhecer a bondade de Deus para connosco, para acolher a generosidade de Deus que nos dá o “alimento que permanece até à vida eterna”, para reconhecer que esse alimento é o próprio Jesus, “Eu sou o pão da vida”, é necessário o esforço da fé. Jesus recorda que, assim como somos capazes de fazer grandes esforços para conseguir “comida que se perde” também devemos fazer todos os esforços para conseguir o “alimento que permanece”, que não é o Maná do deserto, mas é ele mesmo, o enviado do Pai, que se faz pão na Eucaristia.

É difícil acreditar que alguém a quem não conhecemos nos dá pão gratuitamente, mas isso acontece. Quando Cristo nos diz “Eu sou o pão da vida: quem vem a Mim nunca mais terá fome, quem acredita em Mim nunca mais terá sede”, está a fazer-nos o convite a conhecê-lo. Porque conhecendo aquele que nos dá pão gratuitamente reconheceremos no pão o próprio doador. A mão que dá pão também é pão e, não só a mão, também o doador na plenitude da sua entrega é pão repartido para a vida do mundo.

Para chegar a reconhecer Jesus no pão partido e repartido, entregue na cruz não se pode ficar fechado num passado que já não vivemos. ‘Quando estávamos no Egito tínhamos panelas de carne’, sim, mas também não tínhamos liberdade e a verdade é que já não estamos no Egito, fomos tirados pela mão poderosa do Senhor que nos libertou. Agora vivemos o tempo presente e, neste tempo, somos chamados a comer o “verdadeiro pão do céu” e não das saudades do tempo que passou.

Comer “o alimento que permanece até à vida eterna” é realizar um encontro de fé “quem vem a Mim” também “acredita em Mim” e quem acredita e come do pão que é Jesus descido do céu também se transforma em Jesus, o homem novo, para viver na justiça e na santidade. Não se trata de poesia, de uma ideia como outras. Trata-se de um compromisso com Jesus que eleva o patamar de observação para lá da realidade humana, até ao horizonte de Deus, para o qual é necessária a fé.

Rezar a Palavra

“Senhor, dá-nos sempre desse pão”. Esta é a minha oração deste dia. Dá-me sempre desse pão que é alimento dos fortes e dos fracos, dos homens e dos anjos, dos santos e dos pecadores. Dá-me sempre desse pão que abre horizontes divinos de eternidade, que é fonte de vida e de paz, que é lugar de encontro e descanso. Dá-me sempre desse pão que és tu, no mistério profundo da cruz e da mesa da Eucaristia onde te entregas por mim e para mim.

Compromisso semanal

Sei que indo a Jesus e acreditando nas suas palavras fico saciado das muitas fomes que me assaltam.

Referência: aliturgia.com

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