Ano B
Uma nova oportunidade
Deixei o coração preso àquele primeiro olhar que tudo ilumina e num segundo me criou na liberdade de ser eu. Perdi-me de mim, mas não perdi aquele olhar. Fugi. Lutei contra tudo e contra todos. Tive esperança de esquecer, caí no pó da estrada e fiz lama com as lágrimas choradas. Primeiro chorei para esquecer, depois chorei por me lembrar. Gritei do fundo da minha solidão “tem piedade”. Conheceste a minha voz e renasci.
LEITURA I Jr 31, 7-9
Eis o que diz o Senhor: «Soltai brados de alegria por causa de Jacob, enaltecei a primeira das nações. Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai: ‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’. Vou trazê-los das terras do Norte e reuni-los dos confins do mundo. Entre eles vêm o cego e o coxo, a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz. É uma grande multidão que regressa. Eles partiram com lágrimas nos olhos e Eu vou trazê-los no meio de consolações. Levá-los-ei às águas correntes, por caminho plano em que não tropecem. Porque Eu sou um Pai para Israel e Efraim é o meu primogénito».
Quando Israel está a viver a depressão causada pela derrota frente a Babilónia e a desgraça da deportação, Jeremias anuncia que o Senhor vai mudar a sorte do seu povo e trazer de volta todos os que partiram com lágrimas nos olhos e vai restaurar a primeira das nações.
Salmo 125 (126), 1-2ab.2cd-3.4-5.6 (R. 3)
O salmo reconhece que Deus é quem pode mudar a sorte do seu povo. Como fez ao libertar o povo de Babilónia, faz também hoje e sempre, transformando as lágrimas em alegria, como a chuva muda o deserto num jardim.
LEITURA II Heb 5, 1-6
Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens, é constituído em favor dos homens, nas suas relações com Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Ele pode ser compreensivo para com os ignorantes e os transviados, porque também ele está revestido de fraqueza; e, por isso, deve oferecer sacrifícios pelos próprios pecados e pelos do seu povo. Ninguém atribui a si próprio esta honra, senão quem foi chamado por Deus, como Aarão. Assim também, não foi Cristo que tomou para Si a glória de Se tornar sumo sacerdote; deu-Lha Aquele que Lhe disse: «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei», e como disse ainda noutro lugar: «Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec».
Jesus é o sumo sacerdote escolhido por Deus segundo a ordem de Melquisedec. Do mesmo modo que os sacerdotes da antiga aliança eram escolhidos de entre os homens, Jesus é um homem, chamado de entre os homens e constituído sacerdote em favor dos homens.
EVANGELHO Mc 10, 46-52
Naquele tempo, quando Jesus ia a sair de Jericó com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho. Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim». Jesus parou e disse: «Chamai-o». Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te». O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe: «Que queres que Eu te faça?». O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja». Jesus disse-lhe: «Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.
O cego Bartimeu encontra em Jesus uma segunda oportunidade para sair do pó da estrada, de uma vida inútil para si e para todos, e voltar ao grupo dos discípulos, disposto a seguir pelo caminho da cruz.
Reflexão da Palavra
Jeremias, o profeta que nasceu ainda durante o reinado de Josias e foi chamado pelo Senhor para ser profeta quando era ainda muito jovem, está convencido que é possível restaurar a unidade do povo, dividido após a morte de Salomão, o que levou à destruição do reino do norte pelos assírios em 721. Os sucessores de Josias, Joaquim e Sedecias não conseguiram manter a paz e o reino de Babilónia, com Nabucodonosor à frente, deportou grande parte do povo, destruindo a esperança de Israel.
Jeremias, embora tenha estado acorrentado para ser levado a Babilónia, conseguiu que lhe fosse dada a possibilidade de permanecer em Jerusalém e ali ficou. Uma vez em Jerusalém podia ter seguido para o Egito como fizeram muitos para fugir ao desterro, podia ter ingressado no grupo dos que acreditavam ser possível recuperar a independência através da guerrilha, mas escolheu continuar como profeta da esperança junto dos que ficaram em Jerusalém.
É neste contexto que surgem as palavras da primeira leitura. Trata-se de um grito de esperança no meio do desespero, uma luz na noite escura da derrota, uma manifestação de alegria por entre as lágrimas. O profeta em muitas ocasiões anunciou a desgraça e com isso angariou inimigos entre os importantes e conselheiros do rei, na tentativa de evitar que seguissem pelo caminho da ruína. Agora, que tudo se desmoronou, anuncia a esperança e a alegria do regresso. Tem consciência que é uma notícia difícil de compreender tendo em conta a realidade em que o povo se encontra, por isso tem o cuidado de salientar que não é ele quem o diz, é o Senhor “eis o que diz o Senhor” e a confiança vem do facto de que, o Senhor é “um Pai para Israel e Efraim é o meu primogénito”.
A libertação anunciada é destinada a todos, ao “resto de Israel”, os que ficaram em Jerusalém, os que estão nas terras do norte, “o cego e o coxo, a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz”, todos os que “partiram com lágrimas nos olhos”, porque Deus não abandona ninguém.
Depois de analisarmos a primeira leitura entendemos o salmo 125 como uma composição escrita depois do regresso dos desterrados de Babilónia. O salmista evoca o passado para solicitar a atuação do Senhor no presente e alentar na confiança todos os que, por alguma razão, se vejam em lágrimas, pois o Senhor é capaz de mudar a sorte do seu povo.
De facto, no passado, quando o povo estava em Babilónia “o Senhor mudou o destino de Sião”. Foi algo tão inacreditável e inesperado, ainda que anunciado pelos profetas, que “parecia-nos viver um sonho”. Tratou-se de um feito tão extraordinário que “brotavam expressões de alegria”, soaram “cânticos de júbilo” e até os pagãos diziam “o Senhor fez por eles grandes coisas”.
Hoje, os que sobem a Jerusalém pedem ao Senhor “transformai o nosso destino, como as chuvas transformam o deserto do Negueb”. Israel tem como certeza o que profeta Jeremias anunciou, “os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria”.
O mesmo Deus que no passado mudou a sorte de Israel, com a vinda de Jesus Cristo inaugura um tempo novo, instaura com ele uma nova aliança e um novo sacerdócio. A mudança dá-se na continuidade com o que Deus tinha realizado no passado, cumprindo as promessas feitas, mas revelando-se como uma grande novidade, porque em Jesus tudo é novo.
O autor da carta aos hebreus tem o cuidado de mostrar que Jesus não é sumo sacerdócio por se ter apoderado do título, por iniciativa própria, mas foi como os sacerdotes da antiga aliança, “tomado de entre os homens e constituído em favor dos homens”. Deste modo ele é verdadeiro sumo sacerdote, constituído como tal, por “aquele que Lhe disse: «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»”. Com isto o autor quer dizer que aqueles que seguem Jesus não são infiéis às tradições dos seus pais, mas vivem o que eles esperaram durante séculos.
Jesus, não sendo da tribo de levi, a tribo sacerdotal, mas da descendência de David, não poderia nunca ser sum o sacerdote. No entanto, o autor de hebreus recorre ao salmo 109 para justificar que, “aquele que Lhe disse: «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»” é o mesmo que lhe disse “tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”. Com isto, faz a aproximação de Jesus a Abraão e revela a liberdade de Deus que não se sente obrigado a seguir pelos nossos esquemas, mas pode suscitar sacerdotes segundo os seus critérios. Ora, o filho de Deus que se fez homem é, por via da encarnação, o verdadeiro mediador entre Deus e os homens, capaz de “ser compreensivo para com os ignorantes e os transviados”.
O relato evangélico situa-nos diante da última cena antes da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém e depois do terceiro anúncio da sua morte e do pedido dos filhos de Zebedeu para ocuparem o lugar ao lado de Jesus, como refletimos no passado domingo.
Estamos em Jericó. Marcos não descreve nada de importante que se tenha passado na cidade. É quando saem em direção a Jerusalém, que tudo se passa. Jesus segue rodeado de uma grande multidão quando um cego o surpreende pondo-se aos gritos a pedir a sua atenção. O cego, chamado Bartimeu (filho de Timeu), pede a Jesus “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim”.
A forma como Marcos descreve esta cena é muito curiosa e tem muito a dizer-nos. O cego embrulhado na capa e sentado à beira do caminho, ao contrário do que poderíamos esperar, não é um desconhecido. Tem um nome, chama-se Bartimeu, e todos conhecem a sua família, é filho de Timeu. Quando começa a gritar “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim” os discípulos reagem de modo inesperado mandando-o calar. É verdade que estão perto de Jerusalém e é perigoso fazer alarido sobre a presença de Jesus porque o querem matar, mas isso não justifica a reação.
O cego conhece Jesus, chama-lhe mestre e Filho de David. Por outro lado, Jesus conhece-lhe a voz e quando todos o impedem de gritar, Jesus manda-o chamar. Perante esta ordem tudo muda. Os discípulos incentivam-no a ter coragem porque o mestre chama e ele pode ter uma segunda oportunidade. Teria Bartimeu sido um do discípulo que abandonou o mestre e acabou cego, caído no pó da estrada numa vida inútil para ele e para os outros? Pode ser.
Jesus faz-lhe a mesma pergunta que tinha feito a Tiago e João “que queres que eu te faça?”, ao que o cego pede o que sabe que Jesus lhe pode dar. Jesus ilumina-o com a fé para que veja “a tua fé te salvou” e diz-lhe “Vai”, mas ele não foi. Diz o evangelho que ele “recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho” o que leva a crer que Jesus lhe disse o mesmo que a Pedro, quando ele o repreendeu após o primeiro anúncio da paixão. A Pedro Jesus também disse “vai-te da minha frente” que é entendido como “vai para trás de mim”, para o lugar dos discípulos seguindo-me. Também ao cego, Jesus, ao dizer “vai” quererá dar-lhe uma segunda oportunidade dizendo-lhe “vai para trás de mim, para o lugar dos discípulos.
Esta ideia torna-se ainda mais forte perante a atitude do cego ao ser chamado por Jesus. Ele “atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus”. Estas três atitudes têm um significado claro no evangelho de Marcos. Atirar a capa revela a decisão de mudar de vida, desprender-se de tudo para seguir Jesus, numa atitude totalmente contrária ao homem rico a quem Jesus desafiou a vender tudo para o seguir e não foi capaz. Deu um salto, o que manifesta decisão feliz. O chamamento era tudo o que esperava que lhe acontecesse e revela que Deus não deixa ninguém para trás. E apresentou-se diante de Jesus disposto a tudo com entusiasmo, coisa que os doze parecem ter perdido no caminho onde o medo tomou conta deles. Jesus reconhece no cego a fé necessária para seguir com ele a Jerusalém e subir à cruz, na esperança da ressurreição.
Meditação da Palavra
A palavra deste XXX domingo do tempo comum, afirma a certeza da possibilidade permanente da salvação porque Deus, que tem poder para mudar a nossa sorte, dá sempre uma segunda oportunidade a todos.
Na primeira leitura, Jeremias é a voz de Deus que desperta a esperança no meio do caos em que se tornou a vida de Israel. Ali, onde a desgraça esmagou o seu povo, quando a noite desceu sobre os corações, quando as correntes aprisionaram as mãos e os pés, Deus convida “soltai brados de alegria por causa de Jacob, enaltecei a primeira das nações” porque, ao contrário do que afirmam as armas da vitória e as lágrimas da derrota, “o Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel”.
O convite à alegria e à esperança vem da certeza de que Deus pode mudar o curso da história do seu povo e da história de cada homem em todos os tempos. Ele pode mudar“o destino de Sião” e transformar em alegria as lágrimas, como refere o salmo 125.
Bartimeu, o discípulo que abandonou Jesus num determinado momento da sua vida, misturou as lágrimas com o pó da terra e entrou na noite escura que o impede de ver quem passa pelo caminho. Caído na desgraça, espera o único conforto que pode ter quem perdeu tudo, até a dignidade de uma vida própria. Mas, ali, à saída de Jericó, onde e quando parecia impossível acontecer, surge Jesus, o mestre, Filho de David, a quem ele abandonara na esperança de poder ganhar o mundo inteiro, apenas porque entendeu que era mais importante despedir-se primeiro da sua família, ou preferiu ir sepultar o seu pai ou esperava algo mais do que uma pedra para reclinar a cabeça. Quem sabe, este cego não é aquele homem rico que tempos antes se aproximou de Jesus em busca da vida eterna e, por causa das riquezas, não teve coragem de o seguir.
Ali, caído por terra, sem luz nos olhos, consegue perceber que, aquele Jesus que ele abandonou, está a passar rodeado de gente que o impede de ver quem está sentado à beira da estrada. Só um grito, uma súplica tirada do fundo da alma, pode fazer parar Jesus. E grita “Filho de David, tem piedade de mim”. Correndo o risco de perder a última oportunidade, ele grita mais alto, contra a vontade da multidão, na esperança de ser atendido “tem piedade de mim”, e tem sorte porque Jesus reconheceu a sua voz e chamou-o novamente. Diante da força do chamamento o homem deixa tudo, dá um salto de alegria e dispõe-se a fazer tudo o que Jesus lhe pedir. E Jesus apenas renova o mesmo desafio de sempre, “põe-te atrás de mim”.
A luz que ilumina o olhar de Bartimeu, livre de preconceitos, disponível a tudo, centrado apenas no mestre, leva-o a Jerusalém, leva-o à cruz, abre-lhe a porta da vida eterna.
Nós somos o bartimeu, aquele cego que um dia teve a oportunidade de seguir Jesus e, por uma qualquer razão se perdeu dele. Ao escutar a palavra deste domingo, sabemos que Jesus, o sumo sacerdote que se compadece dos que, por ignorância se perdem do seu caminho e terminam caídos no pó da estrada entre lágrimas de arrependimento, não deixa ninguém para trás.
Jesus, rodeado de discípulos amedrontados, não deixa que ninguém fique na margem, à beira do caminho, caído, sentado, sem vida, sem luz, sem alegria. Ele conhece a voz do nosso coração que chora e anima a nossa esperança com uma nova oportunidade, “que queres que te faça?”.
E, como Israel, como o cego e tantos outros ao longo da história “parece-nos viver um sonho”. O deserto em que mergulhámos recebe as torrentes de água e as lágrimas transformam-se em alegria. Temos caminho, já não andamos à deriva. Agora, com Jesus, encontrámos um caminho.
Hoje, muitos homens e mulheres, jovens e até crianças vivem à beira do caminho, esperam uma nova oportunidade para encontrar Jesus e precisam de discípulos disponíveis para dizerem com entusiasmo “Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te”
Rezar a Palavra
Como o cego Bartimeu, também eu hoje grito do mais fundo da minha alma por piedade. Tem piedade de mim, Senhor, porque me perdi do caminho certo. Dá-me, Senhor, uma nova oportunidade para regressar ao grupo dos discípulos que querem ir contigo no caminho da vida. Acolhe-me com o teu olhar para que outros, vendo como regressei, sintam vontade de dar os passos necessários para chegar a ti.
Compromisso semanal
Quero dizer a todos “tem coragem! Ele está a chamar por ti”.
Referência: alitugia.com