O apóstolo prova que somos filhos de Deus pelo facto de termos o Espírito Santo em nós (cf. Gal 4,4); diz ele que nunca nos atreveríamos a dizer «Pai nosso, que estás nos Céus» se não fosse a consciência de que o Espírito Santo habita em nós e grita com a voz poderosa da inteligência e da fé: «Abbá, Pai». […] É preciso notar que, na Sagrada Escritura, a palavra «clamor» não significa a intensidade da voz, mas a força do pensamento e da verdade que é expressa; assim, por exemplo, no Êxodo, o Senhor responde a Moisés: «Porque clamas a Mim?» (Ex 14,15), embora Moisés não tenha proferido nenhuma palavra. Por isso, a Escritura chama «clamor» ao seu coração contrito, que se lamenta com lágrimas pelo povo […]. «Portanto, já não és servo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus» (Gal 4,7). Tendo em vós o Espírito do Filho de Deus que clama «Abbá, Pai», comenta ele, deixastes de ser servos e tornastes-vos filhos. Antes, não éreis diferentes de um servo, apesar de pertencerdes à natureza de Deus; mas vivíeis como crianças, sob o poder de tutores e mestres. Se agora vos tornastes filhos, tendes direito a uma herança em conformidade. […] Tendo passado da escravidão à liberdade, herdareis com o herdeiro do Pai, Cristo Jesus, que, na natureza humana que assumiu, diz no salmo: «Ele Me declarou: “Tu és meu filho, Eu hoje Te fiz nascer. Pede-Me e Eu to concederei; os povos serão a tua herança”» (Sl 2,7-8). O que dizemos aqui no singular deve ser entendido como referindo-se a todo o género humano, pois todos nós, os crentes, somos um só em Cristo Jesus, membros do seu corpo e destinados ao estado de varão perfeito, tendo Cristo como cabeça, porque Cristo é a cabeça do homem (1Cor 11,2).
São Jerónimo (347-420) presbítero, tradutor da Bíblia, doutor da Igreja – Comentário sobre a Epístola aos Gálatas