Domingo VII do Tempo Comum (Ano C)

Ano C

A maior medida possível

Entrou na loja, mercearia de aldeia, daquelas que cheiram a antigamente. Olhou para as prateleiras e não encontrava o que queria, como acontecia nos supermercados da cidade, onde tudo está à vista e cada um leva o que deseja.

Depressa percebeu que o senhor se chamava João e que as pessoas falavam com ele e a ele pediam tudo o que queriam. E ele, com a licença que o tempo lhe dava, com olhar limpo e sorriso nos lábios, cortava aqui e ali e pesava em quilos e media em litros e em quartos e sempre dizia “leva mais um bocadinho… mas paga o mesmo”.

Todos sabiam e esperavam que, trazendo pouco levavam muito. O sr. João olhou para ele e disse, “o menino não é daqui”. “Não sou não” disse o jovem. “Então diga lá”. E o jovem disse ao que ia. E também ele ouviu “leva aqui mais um bocadinho… mas não paga mais”.

LEITURA I           1Sm 26, 2.7-9.12-13.22-23

Naqueles dias,
Saul, rei de Israel, pôs-se a caminho
e desceu ao deserto de Zif
com três mil homens escolhidos de Israel,
para irem em busca de David no deserto.
David e Abisaí penetraram de noite no meio das tropas:
Saul estava deitado a dormir no acampamento,
com a lança cravada na terra à sua cabeceira;
Abner e a sua gente dormia à volta dele.
Então Abisaí disse a David:
«Deus entregou-te hoje nas mãos o teu inimigo.
Deixa que de um só golpe eu o crave na terra com a sua lança,
e não terei de o atingir segunda vez».
Mas David respondeu a Abisaí:
«Não o mates.
Quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor
e ficar impune?».
David levou da cabeceira de Saul a lança e o cantil,
e os dois foram-se embora.
Ninguém viu, ninguém soube, ninguém acordou.
Todos dormiam, por causa do sono profundo
que o Senhor tinha feito cair sobre eles.
David passou ao lado oposto
e ficou ao longe, no cimo do monte,
de sorte que uma grande distância os separava.
Então David exclamou:
«Aqui está a lança do rei.
Um dos servos venha buscá-la.
O Senhor retribuirá a cada um segundo a sua justiça e fidelidade.
Ele entregou-te hoje nas minhas mãos,
e eu não quis atentar contra o ungido do Senhor».

A atitude de David convida a reconhecer que todos os homens pertencem a Deus, estão marcados pela unção do seu amor e só Deus pode decidir das suas vidas. Nem sequer os inimigos podem ser alvo da nossa ira ao ponto de decidirmos tirar-lhes a vida. A resposta certa é a misericórdia.

Salmo Responsorial     Salmo 102 (103), 1-2.3-4.8.10.12-13 (R. 8a)

O salmista compreende que não há perdão como aquele que tem a Deus como origem. Só o perdão de Deus é perfeito, só a sua misericórdia é capaz de recrear a imagem original perdida pelo pecado. O Senhor não apenas perdoa, ele cura, salva, coroa de graça. Pelo perdão, o Senhor, recria-nos como novas criaturas, segundo o seu coração, para aprendermos com ele a perdoar.

LEITURA  II        1Cor 15, 45-49

Irmãos:
O primeiro homem, Adão, foi criado como um ser vivo;
o último Adão tornou-se um espírito que dá vida.
O primeiro não foi o espiritual, mas o natural;
depois é que veio o espiritual.
O primeiro homem, tirado da terra, é terreno;
o segundo homem veio do Céu.
O homem que veio da terra
é o modelo dos homens terrenos;
o homem que veio do Céu
é o modelo dos homens celestes.
E assim como trouxemos em nós a imagem do homem terreno,
traremos também em nós a imagem do homem celeste.

Nascidos de Adão, segundo a carne, somos novas criaturas segundo Cristo. Se a origem terrena nos atrai para as coisas da terra, a origem espiritual atrai-nos para o céu. Por Adão somos homens para a morte, voltaremos ao pó de onde viemos. Por Cristo somos espirituais e chamados a viver no céu ressuscitados com Cristo. Enquanto vivermos entre a origem e o destino trazemos em nós a imagem do homem terreno e a imagem do homem celeste.

EVANGELHO    Lc 6, 27-38

Naquele tempo,
Jesus falou aos seus discípulos, dizendo:
«Digo-vos a vós que Me escutais:
Amai os vossos inimigos,
fazei bem aos que vos odeiam,
abençoai os que vos amaldiçoam,
orai por aqueles que vos injuriam.
A quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra;
e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica.
Dá a todo aquele que te pedir,
e ao que levar o que é teu, não o reclames.
Como quereis que os outros vos façam,
fazei-lho vós também.
Se amais aqueles que vos amam,
que agradecimento mereceis?
Também os pecadores amam aqueles que os amam.
Se fazeis bem aos que vos fazem bem,
que agradecimento mereceis?
Também os pecadores fazem o mesmo.
E se emprestais àqueles de quem esperais receber,
que agradecimento mereceis?
Também os pecadores emprestam aos pecadores,
a fim de receberem outro tanto.
Vós, porém, amai os vossos inimigos,
fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca.
Então será grande a vossa recompensa
e sereis filhos do Altíssimo,
que é bom até para os ingratos e os maus.
Sede misericordiosos,
como o vosso Pai é misericordioso.
Não julgueis e não sereis julgados.
Não condeneis e não sereis condenados.
Perdoai e sereis perdoados.
Dai e dar-se-vos-á:
deitar-vos-ão no regaço uma boa medida,
calcada, sacudida, a transbordar.
A medida que usardes com os outros
será usada também convosco».

Viver uma relação autêntica com Deus exige adquirir os mesmos sentimentos de Deus. Deus é misericordioso e com ele aprendemos a ser misericordiosos. Este sentimento não tem limites. De acordo com as palavras de Jesus reveladas por Lucas neste texto do sermão da montanha, a misericórdia ou perdão deve estender-se até aos inimigos e deve ser gratuito, sem esperar nada em troca.

Reflexão da Palavra

A primeira leitura situa-nos no contexto do início da monarquia em Israel. Israel tinha exigido a Deus um rei porque queria ser como todos os povos. Contra a vontade de Samuel, Deus aceitou o desafio e mandou o profeta Samuel ungir Saúl como primeiro rei de Israel. Saul era ainda jovem, de belo aspeto e com capacidades acima dos outros jovens do seu tempo. Depressa, porém, se deixou vencer pelo poder e por tudo o que o poder traz. Desagradou a Deus de tal modo, que Deus decidiu escolher outro rei para substituir Saul. A escolha recaiu sobre David, o jovem pastor.

Impreparado, mas corajoso, David vence Golias, o temido guerreiro que estava à frente do exército dos filisteus. Esta vitória engrandeceu Israel mas entristeceu Saúl que, dominado pelos ciúmes e pela inveja, levanta o seu exército contra David com intenção de o matar.

No texto deste domingo conta-se que o exército de Saúl é superior e espera capturar David no deserto de Zif. Os planos, no entanto, alteram-se e David consegue entrar no acampamento de Saúl enquanto todos dormiam. Os sinais parecem claros para Abisaí, o amigo fiel de David: “Deus entregou-te hoje nas mãos o teu inimigo”. É isso mesmo que David acaba por dizer a Saúl “Ele entregou-te hoje nas minhas mãos”. Matar Saúl naquela situação parece ser a vontade de Deus e era compreensível, pois podia alegar defesa pessoal. Abisaí, assim entende e assim quer fazer, “deixa que de um só golpe eu o crave na terra com a sua lança e não terei de o atingir segunda vez”.

Por que razão David não mata Saúl? Não é por medo dos três mil soldados de Saúl, não é por não ter oportunidade, pois, “todos dormiam, por causa do sono profundo que o Senhor tinha feito cair sobre eles”. David tem uma oportunidade única. No entanto, David lê os acontecimentos por outra perspetiva que Abisaí não consegue ver, Saúl também não, e que é pouco habitual ser tida em conta. A perspetiva de David é a de Deus. Quem é Saúl aos olhos dos homens? O inimigo de David. E aos olhos de Deus? É o ungido do Senhor. Colocando-se nesta perspetiva, David responde de um modo novo “eu não quis atentar contra o ungido do Senhor”. E, porquê?  Porque, “quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor e ficar impune?”. Apesar de não ter sido fiel ao Senhor, Saúl é “o ungido do Senhor” e David não pode atentar contra ele. Só Deus pode decidir o destino de Saúl.

O salmo 102 vai responder a esta primeira leitura revelando que Deus é misericórdia para connosco porque “Ele sabe de que somos formados”. Tratando-se de um hino à misericórdia de Deus, podem identificar-se três partes distintas. O salmista começa por se convidar a si mesmo a louvar o Senhor, “bendiz, ó minha alma, o Senhor…”, passa depois a descrever os motivos desse louvor, o Senhor perdoa, cura, salva e enche de graça e misericórdia… e finalmente, em jeito de conclusão convida os anjos, os astros e todas as obras de Deus, a louvar o Senhor “em todos os lugares”. Em todo o salmo ressoa a misericórdia, o perdão, o infinito amor de Deus como o motivo do louvor. Ressoa ainda a preocupação do Senhor pelos seus filhos porque os conhece, sabe de que são feitos e, por isso, usa de paciência e compaixão para com eles.

Na sequência da explicação sobre “como ressuscitam os mortos”, Paulo apresenta a distinção entre o homem terreno e o homem espiritual, a partir da figura de Adão. O primeiro Adão é terreno e o segundo Adão, ou seja, Cristo, é espiritual.

Adão não é um homem singular, mas o plural, a humanidade. Ao falar de Adão, Paulo pretende falar da humanidade criada com uma vocação espiritual, de acordo com a afirmação de Génesis, “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. A humanidade foi criada para realizar a vocação espiritual de ser imagem e semelhança de Deus.

Há, segundo Paulo, uma humanidade que se deixou corromper pela serpente, permanecendo como homem terreno, não realizando a sua vocação. Em Cristo, novo Adão, começa uma nova humanidade, a daqueles que, pela vida que receberam de Cristo, atingiram o estado de homem espiritual. Aquele que permanece terreno tem comportamento terreno e caminha para a morte. Mas aquele que se torna espiritual, tem um comportamento espiritual e encontra a vida.

Enquanto permanecermos na terra estamos divididos entre o homem terreno e o homem espiritual. Nenhum de nós é puramente terreno e puramente espiritual. Trazemos em nós as marcas de Adão, a inclinação para o mal e os desejos terrenos e trazemos em nós também as marcas da cruz de Cristo e o desejo do céu. Somos simultaneamente do céu e da terra. Por isso Paulo diz “assim como trouxemos em nós a imagem do homem terreno, traremos também em nós a imagem do homem celeste”.

Na ressurreição atingiremos o estatuto perfeito de homem espiritual. Seremos, sem oposição entre corpo e alma, na totalidade do nosso ser, como Cristo ressuscitado.

O evangelho é toda uma proposta que é feita a quem deseja traduzir na vida os mesmos sentimentos que se encontram em Deus para ser “filho do Altíssimo”.

A história da humanidade é uma história de violência e a mesmo tempo uma luta permanente para a erradicar a violência das relações entre os homens e entre os povos. Desde Caim que a violência é uma constante e também desde ali se propõem formas de vencer esta violência. Deus protege Caim, apesar do seu pecado, prometendo “se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais”. Mais tarde vem a Lei de Talião “olho por olho e dente por dente”. A não violência foi-se manifestando de muitos modos e com diversas razões. David não exerce violência sobre Saúl porque ele é o ungido do Senhor. Jesus propõe ir mais longe, para lá da não violência, até ao amor aos inimigos.

A proposta é de vencer o homem carnal e chegar ao homem espiritual. Este, vive acima dos limites terrenos, na gratuidade, à imagem de Deus “que é bom até para os ingratos e os maus”. É a vocação de que fala Paulo na carta aos coríntios. Chamados em Cristo a ser misericordiosos como Deus é misericordioso, numa vocação que atravessa a história da humanidade sob o olhar da paciência e pedagogia amorosa de Deus que ensina aos homens “como quereis que os outros vos façam, fazei-lho vós também”.

Trata-se do amor ao próximo que elogia a atitude de David para com Saúl e a supera, “amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam”. Responder com violência à violência é a resposta do homem terreno, como Caim. Perdoar os inimigos é fazer a experiência do homem espiritual, à imagem de Cristo, o homem perfeito.

A proposta de Jesus não é apenas a não violência como conquista humana da paz. Trata-se de ser filho de Deus, ser como Deus e superar a habitual atitude de “amar aqueles que vos amam”, “fazer bem àqueles que vos fazem bem”, “emprestar àqueles que podem retribuir”. O desafio de Jesus é ir mais além da bondade, porque bons são todos, mesmo aqueles que não receberam o evangelho. Aos discípulos, Jesus exige mais “amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca”. Porque a recompensa vem de Deus e consiste em ser seus filhos.

Os que assim fazem não têm medo de ser julgados, mas têm medo de cair na armadilha de julgar e condenar de modo gratuito e inconsciente que tira ao outro a possibilidade de viver, porque essa é a medida com que serão julgados e condenados, “a medida que usardes com os outros será usada também convosco”.

Meditação da Palavra

Ser como os pecadores ou ser como o Pai que está nos céus? Ser homem terreno ou homem espiritual? Ser como Saúl ou como David? Seguir a lógica humana ou a lógica de Deus? A diferença entre uma posição e outra é maior do que a distância entre a terra e o céu.

Como descendentes de Adão, trazemos na carne as marcas do homem terreno. As marcas do pecado inclinam-nos para o pó “tu és pó e ao pó voltarás”. O nosso olhar está fixado na terra de onde viemos. Somos nascidos da Adamá, da terra. No batismo passámos pela experiência da morte e da ressurreição com Cristo, e tornámo-nos com ele homens espirituais, filhos de Deus, cidadãos do céu, destinados à vida, “trouxemos em nós a imagem do homem terreno, traremos também em nós a imagem do homem celeste”.

Paulo fala da nossa condição de homem terreno no passado. Recorda que fomos esse homem, mas deixámos de o ser pelo Batismo, verdadeira adesão a Cristo e ao seu evangelho, que é convite a amar, fazer o bem, abençoar, orar, “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam”, que são caraterísticas do homem celeste.

Entretanto, continuamos a sentir a força do homem terreno. Em muitas circunstâncias não respondemos de acordo com os princípios do homem celeste, mas segundo os critérios do homem terreno. A primeira leitura mostra, de modo claro, esta realidade. Saúl é um homem ungido pelo Senhor. Foi constituído pela unção o rei de Israel, um homem de confiança diante de Deus. Entretanto, deixou que o ciúme dominasse a sua vida ao ponto de matar o homem celeste e revelar a irracionalidade do homem terreno.

Na mesma leitura, Abisaí, perante a possibilidade de salvar a pele dele e de David, entende que foi Deus quem preparou a armadilha a Saúl para que David acabasse com a sua vida por vingança. No seu raciocínio de homem terreno era lógico não perder aquela oportunidade e ganhar a batalha matando o rei. Contra a violência de Saúl a única resposta seria a vingança.

David, porém, faz uma leitura diferente. Para ele, Saúl, apesar dos sentimentos violentos que o impedem de pensar corretamente, continua a ser o eleito de Deus, o ungido do Senhor. Por isso a sua resposta não é a violência, mas o perdão. David sabe que a violência tem consequências. Livrava-se facilmente de Saúl, seu inimigo, “de um só golpe eu o crave na terra com a sua lança”, mas viveria com as mãos manchadas de sague o resto da vida por ter atentado contra o ungido do Senhor.

No evangelho Jesus apresenta os critérios de vida dos seus discípulos, chamados a ser como ele, homens celestes, que têm como objetivo principal serem “filhos do Altíssimo”. O discípulo de Jesus ama os inimigos, faz bem até aos que o odeiam, abençoa mesmo que o amaldiçoem, reza pelos que o perseguem, dá a face a quem lhe quer bater e dá a túnica a quem lhe quer levar a capa. Não reclama o que é seu e faz aos outros o que gostava que lhe fizessem e não espera retribuição. Menos que isto é ser como os pecadores, ou seja, como os que não conhecem o evangelho.

O discípulo de Jesus, vive os critérios do homem celeste porque quer ser misericordioso como o Pai. Sabe que a medida de Deus supera a medida dos homens, por isso não teme que o julguem ou condenem, preocupa-se em não julgar, nem condenar. A sua preocupação é dar e perdoar porque sabe que a sua recompensa é grande nos céus, pois Deus dá sempre com medida grande, calcada, a transbordar.

Esta é a proposta para o verdadeiro discípulo. Sabendo que ainda trazemos em nós as marcas do homem terreno, sabemos também que um dia seremos misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso. Chegaremos à estatura do homem espiritual, à imagem de Cristo, capazes de perdoar aos inimigos e de emprestar sem esperar agradecimento, simplesmente por sabermos, como David, que todos os homens são ungidos do Senhor.

Rezar a Palavra

Senhor, se medires as minhas palavras, os meus pensamentos, os meus desejos, os sentimentos que me assaltam em cada dia, estarei perdido. Mas tu és como um Pai que se compadece dos seus filhos. És paciente e cheio de bondade, não me tratas como os meus pecados merecem nem de acordo com as minhas culpas. A tua paciência para comigo ensina-me uma nova forma de viver, um novo homem que posso ser. Ensina-me a viver a partir dos critérios do homem do céu, do homem que deseja ser teu filho.

Compromisso semanal

Quero aprender a ver segundo os critérios de Deus.

Via: aliturgia.com

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