Domingo VIII do Tempo Comum (Ano C)
Ano C
Sintonizar o coração
No centro da aldeia, numa casa de janelas abertas ao sol nascente, vivia um velho relojoeiro. Todos os que se atrasavam passavam por lá para que lhes acertasse o relógio. E ele, com a sabedoria e a paciência dos anos, colocava a luneta, abria cada relógio e curava-os do seu teimoso atraso. Conhecia todos os relógios. Já sabia de que padecia cada um deles e qual a razão que os levava a atrasarem-se. Às vezes juntavam-se vários relógios, todos atrasados, o que provocava grande discussão entre eles. Nenhum queria ser o mais atrasado e todos tinham na cabeça a ideia de que tinha sido a primeira vez que se atrasaram.
Um dia apareceu por ali um homem que lhe pediu para acertar o coração. O relojoeiro fitou nele o olhar admirado e disse: “O coração?”, “Sim! O coração!”. “Nunca ninguém me tinha pedido isso… consertar como?”, “Queria o meu coração a bater ao mesmo ritmo de todos os outros”. “Coisa difícil”.
LEITURA I Sir 27, 5-8 (gr. 4-7)
Quando agitamos o crivo, só ficam impurezas:
assim os defeitos do homem aparecem nas suas palavras.
O forno prova os vasos do oleiro,
e o homem é posto à prova pelos seus pensamentos.
O fruto da árvore manifesta a qualidade do campo:
assim as palavras do homem revelam os seus sentimentos.
Não elogies ninguém antes de ele falar,
porque é assim que se experimentam os homens.
Usando o exemplo do crivo com que se peneira a farinha, o forno do oleiro e a qualidade dos frutos da árvore, Ben Sira, explica que o homem se conhece pelas palavras. É nelas que se revelam os defeitos e os sentimentos do homem. Portanto, conclui, “Não elogies ninguém antes de ele falar”
Salmo Responsorial Salmo 91 (92), 2-3.13-14.15-16 (R.cf. 2a)
O salmo responde à primeira leitura mostrando que o justo, aquele cujas palavras revelam a verdadeira sabedoria, é como uma árvore que floresce à sombra de Deus. O justo é aquele que canta e louva o Senhor com salmos, e mantém o seu vigor mesmo na velhice.
LEITURA II 1Cor 15, 54-58
Irmãos:
Quando este nosso corpo corruptível se tornar incorruptível
e este nosso corpo mortal se tornar imortal,
então se realizará a palavra da Escritura:
«A morte foi absorvida na vitória.
Ó morte, onde está a tua vitória?
Ó morte, onde está o teu aguilhão?».
O aguilhão da morte é o pecado,
e a força do pecado é a Lei.
Mas dêmos graças a Deus,
que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Assim, caríssimos irmãos,
permanecei firmes e inabaláveis,
cada vez mais diligentes na obra do Senhor,
sabendo que o vosso esforço não é inútil no Senhor.
Sabendo que Jesus já alcançou a vitória sobre a morte e nos espera a imortalidade quando se realizar a Palavra da Escritura, não podemos desanimar. A vitória é certa e o esforço não é inútil. Por isso, a vida do cristão deve ser um permanente esforço para se manter ativo e constante “na obra do Senhor”.
EVANGELHO Lc 6, 39-45
Naquele tempo,
disse Jesus aos discípulos a seguinte parábola:
«Poderá um cego guiar outro cego?
Não cairão os dois nalguma cova?
O discípulo não é superior ao mestre,
mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre.
Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista
e não reparas na trave que está na tua?
Como podes dizer a teu irmão:
‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’,
se tu não vês a trave que está na tua?
Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista
e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão.
Não há árvore boa que dê mau fruto,
nem árvore má que dê bom fruto.
Cada árvore conhece-se pelo seu fruto:
não se colhem figos dos espinheiros,
nem se apanham uvas das sarças.
O homem bom,
do bom tesouro do seu coração tira o bem;
e o homem mau,
da sua maldade tira o mal;
pois a boca fala do que transborda do coração».
O autêntico discípulo de Jesus não indica um caminho aos outros que ele próprio não tenha já percorrido. Procura limpar primeiro o seu coração, a sua mente e a sua vida para depois ajudar o irmão a limpar também a sua. Procura primeiro dar frutos de boas obras que correspondam à sua condição de discípulo que imita o mestre.
Reflexão da Palavra
Sabemos que o autor do livro de Sai é Jesus, o filho de Eleazar, filho de Sira, um judeu culto preocupado com a juventude que está ameaçada pela cultura grega e em risco de perder as referências da sua cultura e da sua fé. Todo o livro é uma forma de educar os mais novos nos princípios, valores e critérios da fé judaica.
No pequeno texto que se lês este domingo, o autor alerta para a importância da palavra como revelação do interior do homem. Do mesmo modo que a peneira, o crivo, revela as impurezas que se podem encontrar na farinha branca, o fogo prova a qualidade do barro e os frutos das árvores revelam a qualidade do terreno, do mesmo modo as palavras revelam o interior do homem. Por isso, adverte Bem Sira, “não elogies ninguém antes de ele falar, porque é assim que se experimentam os homens”.
O salmo, responde à primeira leitura apresentando a diferença entre o salmista e os insensatos, os ímpios. Construído em três partes, o salmo começa com uma introdução em forma de louvor “É bom louvar o Senhor e cantar salmos ao vosso nome, ó Altíssimo”, depois, numa segunda parte, revela que a sorte do ímpio é bem diferente da sorte do justo. O salmista é o justo que pode afirmar “Tu me alegraste com as tuas obras”, “aumentaste a minha força…ungiste-me” e, por isso, acredita que verá a sorte dos que lhe fazem mal “com meus olhos verei… com meus ouvidos, ouvirei”. Os ímpios, que atentam contra a vida do salmista, esses, “não entende estas coisas”. “Ainda que cresçam como a erva e floresçam… serão exterminados”, enquanto que o justo “o justo florescerá…, crescerá” e “mesmo na velhice dará o seu fruto”. O salmista acredita que, aconteça o que acontecer, o mau será castigado e o justo recompensado.
Na segunda leitura chegámos ao fim do capítulo 15, todo dedicado a responder aos diversos problemas que se colocam na comunidade a respeito da ressurreição. Pelas palavras da pequena leitura de hoje, percebe-se que, para Paulo, a ressurreição consiste em adquirir os atributos de Deus. Nós somos corruptíveis e Deus é incorruptível “quando este nosso corpo corruptível se tornar incorruptível”; nós somos mortais e Deus é imortal “quando este nosso corpo mortal se tornar imortal”. Pela ressurreição seremos definitivamente imagem e semelhança de Deus, como o próprio Deus pretendia no início. Esta transformação acontece pela vontade de Deus e pela ação de Cristo e é, para Paulo, uma verdadeira vitória sobre a morte, “dêmos graças a Deus, que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo”. Por isso, recorda o apóstolo, “o vosso esforço não é inútil” porque a vitória é certa. A morte já não tem poder sobre nós, “Ó morte, onde está a tua vitória?”, nem a morte nem o pecado, nem a lei, por isso damos “graças a Deus” e nele permanecemos “firmes e inabaláveis”.
O texto do evangelho situa-se no final do discurso que Jesus realiza depois de descer do monte onde escolhe os doze, que inclui as bem-aventuranças. Trata-se de um conjunto de comparações que pretendem ensinar as atitudes do discípulo na relação com os irmãos. Lucas chama-lhe parábola, “disse Jesus aos discípulos a seguinte parábola”. Na realidade são pequenos ensinamentos tirados da lógica quotidiana, fáceis de entender e de guardar para ter em conta na vida.
As ditas comparações salientam o óbvio, um cego não pode guiar um cego, um discípulo não está acima do mestre, uma trave à frente dos olhos não permite ver o argueiro do irmão e uma árvore má não pode dar bons frutos, assim como um homem mau não pode tirar coisas boas do seu coração. Parece lógico e de fácil aceitação. Lucas serve-se de perguntas retóricas para dar ainda mais força às comparações.
Depois das bem-aventuranças, do amor aos inimigos e da ordem para não julgar nem condenar que não deixava outra hipótese a quem quer ser discípulo de Jesus, estas palavras reforçam a diferença entre os outros, os pecadores, e os irmãos da comunidade cristã.
Lucas pretende dizer que ninguém pode ensinar a outro um caminho que não percorreu, mas também ninguém deve preferir seguir um cego em vez de seguir Jesus. Ninguém pode limpar a vista do irmão se não limpou primeira a sua, mas também não deve querer permanecer com o argueiro na sua vista. Ninguém pode dar bons frutos se não for realmente bom no seu coração, mas também não deve querer continuar a ser uma árvore má. Ninguém na comunidade pode ser mais do que o mestre, ninguém pode colocar-se no lugar dele, mas todos devem aprender dele para serem como ele. Assim, na comunidade, quem ensina é sempre e unicamente Jesus, pois só ele é o mestre.
Meditação da Palavra
Jesus encontra-se numa planície, lugar escolhido para ensinar os seus discípulos. Recordamos que, o ensino de Jesus começa pela apresentação das quatro Bem-aventuranças e as quatro maldições, mostrando aos discípulos dois caminhos possíveis para seguirem. Um conduz à vida, à bem-aventurança, à felicidade. O outro, parecendo ser uma bênção transforma-se numa maldição, conduz à desgraça, é o caminho da infelicidade.
Depois, Jesus, desafia os discípulos a serem como Deus, misericordiosos. A irem mais longe no amor, amando os inimigos, fazendo bem mesmo quando forem odiados, abençoando quando forem amaldiçoados, e rezando por todos, bons e maus. E, em nenhuma circunstância julgar ou condenar, mas sempre perdoar.
O desafio de ser como Deus é a proposta que faz Paulo na segunda leitura. Somo corruptíveis e mortais, mas em Cristo, pelo batismo, tornámo-nos incorruptíveis e imortais graças à sua paixão. Por isso tudo deve concorrer para concretizar em nós esta promessa de vida eterna. Desde logo “permanecei firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor” e dando “graças a Deus”, pois é ele“que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Permanecer firmes e inabaláveis implica a capacidade de discernir com os mesmos critérios de Deus, abandonando os critérios humanos que são, muitas vezes, desumanos e injustos. A primeira leitura alerta para o facto de podermos avaliar as pessoas pelo seu exterior e não ter em conta o seu interior. Por vezes, nos nossos juízos, consideramos as pessoas a partir da sua riqueza, em razão do estatuto familiar, da posição social ou dos benefícios que nos podem advir dessa preferência. Ben Sira alerta para o facto de “as palavras do homem revelam os seus sentimentos” e são os sentimentos o mais importante porque é o que o homem tem dentro de si.
Permanecer firmes e inabaláveis não é ser perfeitos, mas permanecer em caminho. Na comunidade cristã não há os perfeitos e os imperfeitos, há homens e mulheres que estão a fazer caminho. Por isso ninguém pode autoproclamar-se condutor dos irmãos porque só quem já fez o caminho sabe orientar. Só Jesus fez o caminho todo, só ele pode indicar por onde devem seguir todos, para seguirem com a segurança de não cair em nenhuma cova.
Todos na comunidade têm algo que precisa ser corrigido, um argueiro que precisa ser tirado. A pergunta é saber quem pode tirar esse argueiro? Só o Senhor vê o que está no coração para poder limpar. A comunidade pode discernir, a partir da palavra de Deus, a forma mais indicado de realizar a correção fraterna de modo a que todos os irmãos se sintam apoiados no caminho de conversão. Mas ninguém pode ocupar o lugar de Deus na avaliação dos corações.
A árvore pode dar maus frutos e o coração pode estar cheio de coisas más, mas ninguém é dono da árvore nem dos corações ao ponto de decidir arrancar a árvore e remover o coração. Só Deus, com a sua paciência pode decidir quantos anos mais aquela árvore vai permanecer naquele lugar até começar a dar fruto ou até quando o coração precisa de ser trabalhado para se livrar do mal e começar a produzir frutos de boas obras.
Em todos há alguma espécie de cegueira, um argueiro a precisar de ser retirado, um impedimento para produzir bons frutos ou um coração com dificuldade de amar. Deus que conhece o interior de cada homem conta connosco para manifestar os sentimentos de misericórdia, de amor e de perdão, que facilitam o caminho para o encontro com Jesus, em quem todas as imperfeições encontram remédio, toda a cegueira encontra a luz, todas as impurezas são eliminadas e todo o terreno se transforma em terra boa, capaz de produzir frutos em abundância.
Rezar a Palavra
Dá-me, Senhor, um coração capaz de reconhecer o mal que existe em mim e o bem que os irmãos da minha comunidade me querem, quando me alertam para alguma imperfeição. Que a tua palavra, refletida, meditada e rezada no seio da comunidade, faça de nós todos um sinal da tua grande misericórdia. Que os frutos se vejam na tua Igreja através das palavras de cada um dos que celebramos o mistério da tua paixão.
Compromisso semanal
Caminho, certo de que Jesus me leva até à imortalidade.
Via: aliturgia.com