Ano C
Em quem acreditar? A quem adorar?
Parecia uma brincadeira de crianças. Sentados ao lume nas noites frias de inverno, havia sempre alguém que gostava de se meter com ele, o que o deixava irritado. Era o mais pequeno da família e, por isso, para o irritarem diziam-lhe: “Esse não é o teu pai. Foste encontrado ali numa esquina”. Irritado, mas não vencido, ele chegava-se ainda mais ao pai e dizia: “É mentira! Este é o meu pai”. A brincadeira acabava quando o pai, considerando que já chegava, dizia: “Sou o teu pai sim. És o meu filho muito amado”. O seu coração ficava tranquilo e todos se reduziam ao silêncio regressando a paz.
LEITURA I Dt 26, 4-10
Moisés falou ao povo, dizendo:
«O sacerdote receberá da tua mão
as primícias dos frutos da terra
e colocá-las-á diante do altar do Senhor, teu Deus.
E diante do Senhor teu Deus, dirás as seguintes palavras:
‘Meu pai era um arameu errante,
que desceu ao Egito com poucas pessoas,
e aí viveu como estrangeiro,
até se tornar uma nação grande, forte e numerosa.
Mas os Egípcios maltrataram-nos, oprimiram-nos
e sujeitaram-nos a dura escravidão.
Então invocámos o Senhor, Deus dos nossos pais,
e o Senhor ouviu a nossa voz,
viu a nossa miséria, o nosso sofrimento
e a opressão que nos dominava.
O Senhor fez-nos sair do Egito
com mão poderosa e braço estendido,
espalhando um grande terror e realizando sinais e prodígios.
Conduziu-nos a este lugar e deu-nos esta terra,
uma terra onde corre leite e mel.
E agora venho trazer-Vos as primícias dos frutos da terra
que me destes, Senhor’.
Então colocarás diante do Senhor, teu Deus,
as primícias dos frutos da terra
e te prostrarás diante do Senhor, teu Deus».
Israel é um povo que reporta a Deus toda a sua vida. A libertação do Egito e a entrada na terra prometida são o maior acontecimento da sua história. Deus libertou o seu povo e deu-lhe uma terra e o povo recorda esta proeza histórica, anualmente. O povo sabe que deve tudo a Deus. Todos os anos escolhe os primeiros frutos das colheitas e os primeiros animais do rebanho para oferecer a Deus, grato e confiante na contínua bênção de Deus.
Salmo Responsorial Sl 90 (91), 1-2.10-15 (R. cf. 15b)
O salmo afirma a total proteção de Deus para com o seu povo, mas antecipa também o diálogo do evangelho, onde o diabo utiliza as palavras do salmo para tentar Jesus, “Ele mandará aos seus Anjos que te guardem em todos os teus caminhos. Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra”. Sendo verdade que Deus protege Jesus, também é verdade que a palavra de Deus não pode ser usada para pôr Deus à prova.
LEITURA II Rm 10, 8-13
Irmãos:
Que diz a Escritura?
«A palavra está perto de ti,
na tua boca e no teu coração».
Esta é a palavra da fé que nós pregamos.
Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor
e se acreditares no teu coração
que Deus O ressuscitou dos mortos,
serás salvo.
Pois com o coração se acredita para obter a justiça
e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação.
Na verdade, a Escritura diz:
«Todo aquele que acreditar no Senhor
não será confundido».
Não há diferença entre judeu e grego:
todos têm o mesmo Senhor,
rico para com todos os que O invocam.
Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo.
Paulo acentua a importância da Palavra de Deus na vida do cristão. Ela está perto e não longe. Está “na tua boca e no teu coração”. Uma palavra que é para ser anunciada, confessada e acreditada e destinada a todos os povos. Os judeus confessam a ação libertadora de Deus e professam a sua fé nele. Os cristãos fazem o mesmo, não pela mesma razão, mas com a mesma certeza “todo aquele que acreditar no Senhor não será confundido”
EVANGELHO Lc 4, 1-13
Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo Diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O Diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O Diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o Diabo levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-Te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito,
para que Te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe: «Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.
O texto das tentações de Jesus revela a facilidade com que se subverte a verdade para atingir os fins desejados. Jesus é confrontado com a possibilidade de manifestar a sua filiação divina, mas não com os critérios de Deus. Por outro lado, o tentador serve-se da própria palavra de Deus para seduzir Jesus a esse caminho escorregadio. Para vencer a tentação é necessário conhecer a palavra de Deus e usá-la como meio para fazer a vontade de Deus e não a do diabo.
Reflexão da Palavra
As palavras da primeira leitura são tiradas do livro do Deuteronómio e fazem parte do chamado credo histórico de Israel. Trata-se de reconhecer a ação de Deus em favor do seu povo, desde o Egito até à terra prometida.
Todo o israelita faz uma profissão de fé na ação libertadora de Deus e sente-se agradecido por tudo quanto o Senhor fez por eles no passado. A forma de agradecer está determinada antecipadamente, para “quando entrares na terra que o Senhor teu Deus, te há de dar em herança” (Dt 26,1). Por isso, todo o bom judeu oferece “as primícias de todos os frutos que colheres da terra” entregando ao sacerdote, num cesto, com todos os frutos e dizendo “declaro hoje, perante o Senhor, teu Deus, que entrei na terra que o Senhor tinha jurado a nossos pais que nos havia de dar” (Dt 263). Depositado o cesto no altar do Senhor, professa-se a fé com o texto que se lê este domingo.
O credo é uma afirmação de que tudo é um dom de Deus ao seu povo, desde a libertação do Egito até à posse da terra prometida e tudo o que nela ganha vida. A posse da terra é o elemento fundamental da fé deuteronomista. Deus cumpriu a promessa feita a nossos pais, “deu-nos esta terra, uma terra onde corre leite e mel”. Todo o judeu se sente beneficiário de uma herança e de uma tradição histórica. Todo o judeu sabe que é descendente de “um arameu errante”, Abraão e de Jacob que desceu ao Egito com os filhos.
A oferenda dos primeiros frutos simboliza que tudo o que temos e somos nos foi dado por Deus. Portanto, não damos nada que não tivéssemos recebido. Não éramos nada, não éramos povo e não tínhamos uma pátria, mas o Senhor fez de nós um povo e deu-nos uma terra e uma dignidade e, agora, temos um templo onde apresentar ao Senhor as nossas ofertas. É esta a fé de Israel.
O salmista desafia o ouvinte a invocar o Senhor confiando nele, “diz ao Senhor: «Sois o meu refúgio e a minha cidadela: meu Deus, em Vós confio. O incentivo à oração tem como fundamento a certeza do salmista de que o Senhor o atenderá “ele há de livrar-te… ele te cobrirá… não temerás… nenhum mal te acontecerá…”, porque“disseste: “o Senhor é o meu único refúgio… fizeste do Altíssimo o teu auxílio”.
A resposta do Senhor para todo aquele que o invoca confiante é esta, “hei de salvá-lo; hei de protegê-lo… hei de atendê-lo, estarei com ele na tribulação, hei de libertá-lo e dar-lhe glória”, pela simples razão de que “conheceu o meu nome”.
Esta resposta do Senhor aplica-se de modo especial a Jesus, sobretudo, quando ao escutar o evangelho deste domingo, ouvirmos da boca do diabo as palavras “mandará aos seus Anjos que te guardem em todos os teus caminhos. Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra” como tentação para que Jesus confie não no Pai, mas nele próprio que é Filho de Deus.
Na carta aos romanos, Paulo, com base no facto de Israel ter recusado a salvação proposta por Cristo, preferindo continuar sujeito à lei, explica que em Cristo a salvação está ao alcance de todos, judeus e gregos. Enquanto que Moisés anuncia a salvação pelo cumprimento estrito da lei, Cristo anuncia um caminho mais fácil porque ele mesmo é quem sobe aos céus e desce aos infernos.
Para nós a salvação está mais perto, porque “a palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração” e basta, por isso, confessar “com a tua boca que Jesus é o Senhor” e acreditar “no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos” para alcançar a salvação. O percurso da justificação já foi realizado por Cristo, pelo que, já ninguém tem que subir nem descer, e todos, judeus e gregos, encontram a salvação no “mesmo Senhor” se o invocarem, pois “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Que Messias pretende ser Jesus? Esta pergunta está patente de modo subtil no texto do evangelho deste domingo. Os desafios do diabo e as respostas de Jesus apresentam visões diferentes do Messias. A grande tentação da humanidade, no início, foi desconfiar que Deus não queria o seu bem (Gn). A grande tentação do povo de Israel foi pensar que se adorasse outros deuses viveria mais feliz do que obedecendo ao Deus de seus pais (Ex). Jesus é colocado na mesma encruzilhada. O diabo começa por pôr em dúvida a filiação divina de Jesus, “se és o filho de Deus”, ou seja, “tu tens a certeza de que és mesmo o filho de Deus?”, então prova isso.
A primeira tentação coloca Jesus diante do poder de Deus. No deserto Deus deu de comer ao seu povo fazendo cair do céu o maná “Ele (o Senhor) te humilhou e fez passar fome; depois alimentou-te com esse maná, … para te ensinar que nem só de pão vive o homem” (Dt. 8,3). Se Jesus é Filho de Deus pode transformar as pedras em pão.
Do mesmo modo que o povo aprendeu a confiar no Senhor fazendo primeiro a experiência da fome e da sede, Jesus também faz a experiência da fome. Desta experiência ou sai mais forte ou vendido ao tentador. Jesus responde com a palavra de Deus dizendo “nem só de pão vive o homem” revelando, assim, que o seu alimento é fazer a vontade do Pai.
Na segunda tentação o diabo coloca-se no lugar de Deus “se Te prostrares diante de mim”, quando o Senhor diz claramente, “é ao Senhor teu Deus que adorarás, a ele servirás, e pelo seu nome jurarás”. O diabo apresenta-se como o dono de todas as coisas. Ao vencer o primeiro homem, o diabo domina, subjugando a humanidade com o aguilhão da morte, mas não é a ele que pertence o poder. Para conquistar o lugar de Deus parece disposto a abdicar de tudo, desde que primeiro Jesus se prostre diante dele, invertendo os papéis. A resposta de Jesus corresponde ao que Deus pediu ao seu povo no deserto (Dt 6,10-13) “ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto”.
Na terceira tentação introduz-se de novo a dúvida “se és Filho de Deus”. O diabo sabe que Jesus é o Filho de Deus, e Jesus também o sabe, quem não sabe é o leitor. De que modo deve Jesus provar a sua filiação divina? Submetendo-se aos critérios do mundo dominado pelo demónio ou, como diz o salmo, confiando no Senhor, “sois o meu refúgio e a minha cidadela: meu Deus, em Vós confio”, certo de que, “porque em Mim confiou, hei de salvá-lo; hei de protegê-lo, pois conheceu o meu nome. Quando Me invocar, hei de atendê-lo, estarei com ele na tribulação”. Sabendo que Jesus deposita toda a sua confiança no Pai o diabo instiga-o a desafiar Deus, pois, como diz o mesmo salmo “Ele mandará aos seus Anjos que te guardem em todos os teus caminhos. Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra”.
O tentador vai continuar a acompanhar o caminho de Jesus, “o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação, retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo” e vai manifestar-se de modo especial na cruz quando voltar a atacar, “salve-se a si mesmo se é o Messias de Deus, o eleito… Se és o rei dos judeus salva-te a ti mesmo!…” (Lc 23,35…)
Meditação da Palavra
O povo de Deus, libertado do Egito, ao experimentar a fome e a sede no meio do deserto que percorreu durante quarenta anos, aprendeu que só pode confiar em Deus. Por mais que grite contra Moisés e contra Deus, por mais que queira servir os ídolos, como fez com o bezerro de ouro, só no Senhor encontra a água viva que brota da rocha fendida pela vara de Moisés e o Maná que vem do céu.
Esta experiência, que o salmo traduz muito bem quando diz, “tu que habitas sob a proteção do Altíssimo e moras à sombra do Omnipotente”, é a experiência de todo o homem, ainda que nem todos sejam capazes de dizer “sois o meu refúgio e a minha cidadela: meu Deus, em Vós confio”. É também, e sobretudo, a experiência de Jesus. Ele encarna em si a confiança do salmista “o Senhor é o meu único refúgio”, por isso está tranquilo mesmo quando a fome e o tentador lhe exigem uma satisfação imediata.
Israel aprendeu que tudo pertence ao Senhor, de todas as coisas é devedor àquele que o transportou sobre asas de águia através do deserto e lhe ofereceu a terra onde corre leite e mel. E nunca mais esqueceu, por isso, como recorda a primeira leitura, todos os anos recolhem os primeiros frutos e entregam ao sacerdote no templo, “o sacerdote receberá da tua mão as primícias dos frutos da terra e colocá-las-á diante do altar do Senhor teu Deus” e fazem a sua profissão de fé histórica, reconhecendo que sem Deus não é mais do que “um arameu errante”, um povo estrangeiro e escravo no Egito. Tudo o que este povo é e tem deve-o ao Senhor que “ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava” e não ficou indiferente, mas “fez-nos sair do Egito com mão poderosa e braço estendido… Conduziu-nos a este lugar e deu-nos esta terra, uma terra onde corre leite e mel”.
É a experiência de libertação que conduz este povo até ao altar do Senhor onde oferece os bens recebidos e se prostra por terra reconhecendo que “só o Senhor é Deus”.
Também no deserto, durante quarenta dias de jejum, para onde foi conduzido pelo Espírito, Jesus aprende a confiança plena naquele que o enviou com a missão de libertar a humanidade que está sujeita ao poder do pecado e da morte. Alimenta a sua confiança na palavra de Deus, que “está perto de ti, na tua boca e no teu coração” e firma-se nela para não vacilar diante da tentação, que o quer fazer duvidar da sua filiação se não seguir os critérios do mundo, provando pela humildade e o serviço que é o Filho de Deus.
Se o Pai acabara de dizer no seu batismo, cena imediatamente anterior às tentações, que ele, Jesus, é o seu filho muito amado” como poderia Jesus duvidar desta verdade só porque outro o instiga a pôr em causa. Porque haveria Jesus de sentir a necessidade de provar que é Filho de Deus se o próprio Pai se encarrega disso, como o prova toda a história do seu povo. Confiado na palavra, Jesus, responde e desfaz todas as tentações. Afinal Ele próprio é a Palavra do Pai.
Ele próprio é “a palavra da fé que nós pregamos”, como diz Paulo, que é palavra de confiança “todo aquele que acreditar no Senhor não será confundido”. Diante dele, palavra que revela a vontade do Pai que é “alimento” todos são chamados a confessar com a boca e acreditar com o coração “que Deus O ressuscitou dos mortos” e nele se encontra a salvação “pois com o coração se acredita para obter a justiça e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação”.
Como Israel também nós, no deserto da vida, neste caminho tantas vezes difícil de pisar, somos chamados a reconhecer que só de Deus nos vem o alimento que reconforta a vida e alimenta a esperança de modo a vencer a tentação de querer adorar outro. Na sua palavra, alimento de vida eterna, encontramos a força para dizer “sois o meu refúgio e a minha cidadela: meu Deus, em Vós confio”. Na palavra que afirma “Deus O ressuscitou dos mortos”, acreditada com o coração e confessada com a boca encontramos a salvação que é oferecida a todos os homens, judeus e gregos, porque Deus é “rico para com todos os que O invocam”.
Rezar a Palavra
Tu és o meu refúgio Senhor. No teu altar entrego a minha vida. Diante de ti me prostro em adoração. Só tu tens palavras de vida eterna e o meu alimento é fazer a tua vontade. Ensina-me a invocar o teu nome e a trazer nos meus lábios a tua palavra. Que eu creia com o coração e confesse com a minha boca que só tu és o Senhor.
Compromisso semanal
No meu deserto digo ao Senhor: “o Senhor é o meu único refúgio”.
Via: aliturgia.com