Domingo II da Quaresma (Ano C)
Ano C
A difícil montanha da fé
Alpinista sobe a montanha K2, 8.614 metros de altitude. Também já subiu o Evereste, 8.848 metros. Foi a primeira mulher portuguesa a fazê-lo. Tem como objetivo angariar fundos para ajudar as crianças pobres do Bangladesh. Foi difícil a subida. O vento, o frio e a neve obrigaram a sucessivas paragens. Uma avalanche impediu-os de continuar por algumas semanas, mas depois aproveitaram uma janela muito curta para chegar ao topo.
Todo o homem tem uma montanha para subir, um êxodo para fazer, um objetivo a alcançar. O tempo não é muito e as condições climatéricas nem sempre são favoráveis. Há quem fique em casa, quem diga vezes sem conta “gostava de ir”, quem verifique uma e outra vez o equipamento, quem tente algumas vezes e desista e há quem simplesmente se mete a caminho.
LEITURA I Gn 15, 5-12.17-18
Naqueles dias,
Deus levou Abrão para fora de casa e disse-lhe:
«Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar».
E acrescentou:
«Assim será a tua descendência».
Abrão acreditou no Senhor,
o que lhe foi atribuído como justiça.
Disse-lhe Deus:
«Eu sou o Senhor,
que te mandou sair de Ur dos Caldeus,
para te dar a posse desta terra».
Abrão perguntou:
«Senhor, meu Deus,
como saberei que a vou possuir?».
O Senhor respondeu-lhe:
«Toma uma vitela de três anos,
uma cabra de três anos e um carneiro de três anos,
uma rola e um pombinho».
Abrão foi buscar todos esses animais,
cortou-os ao meio
e pôs cada metade em frente da outra metade;
mas não cortou as aves.
Os abutres desceram sobre os cadáveres,
mas Abrão pô-los em fuga.
Ao pôr do sol,
apoderou-se de Abrão um sono profundo,
enquanto o assaltava um grande e escuro terror.
Quando o sol desapareceu e caíram as trevas,
um brasido fumegante e um archote de fogo
passaram entre os animais cortados.
Nesse dia, o Senhor estabeleceu com Abrão uma aliança,
dizendo:
«Aos teus descendentes darei esta terra,
desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates».
Abraão acredita no Senhor apesar de a realidade apresentar sinais contraditórios com a promessa. A fé de Abraão, sendo sólida, inabalável, obediente e comprometida, é uma fé que questiona, faz perguntas, pede explicações.
Salmo Responsorial Sl 26 (27), 1.7-8.9abc.13-14 (R. 1a)
O salmista apresenta-se como um homem de fé que acredita na presença de Deus mesmo quando é noite, mesmo quando o rosto de Deus se oculta. O Senhor é um Deus que protege, em quem se pode confiar, que escuta e atende a nossa prece. Um Deus que se pode encontrar nos caminhos da vida e nos acolhe na eternidade, a terra dos vivos. O Senhor é a minha luz e a minha salvação.
LEITURA II Forma longa Flp 3, 17 __ 4,1
Irmãos:
Sede meus imitadores
e ponde os olhos naqueles
que procedem segundo o modelo que tendes em nós.
Porque há muitos,
de quem tenho falado várias vezes
e agora falo a chorar,
que procedem como inimigos da cruz de Cristo.
O fim deles é a perdição:
têm por deus o ventre,
orgulham-se da sua vergonha
e só apreciam as coisas terrenas.
Mas a nossa pátria está nos céus,
donde esperamos, como Salvador, o Senhor Jesus Cristo,
que transformará o nosso corpo miserável,
para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso,
pelo poder que Ele tem
de sujeitar a Si todo o universo.
Portanto, meus amados e queridos irmãos,
minha alegria e minha coroa,
permanecei firmes no Senhor.
O apóstolo convida os filipenses a permanecerem firmes na fé e a não seguirem aqueles que, dizendo-se seguidores de Cristo, vivem para as coisas terrenas porque são um triste exemplo do que é ser cristão. O verdadeiro discípulo de Cristo segue o exemplo de Paulo e de muitos que têm os olhos postos no céu e esperam viver a transformação do seu corpo à imagem do que sucedeu com Cristo.
EVANGELHO Lc 9, 28b-36
Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago
e subiu ao monte, para orar.
Enquanto orava,
alterou-se o aspeto do seu rosto,
e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente.
Dois homens falavam com Ele:
eram Moisés e Elias,
que, tendo aparecido em glória,
falavam da morte de Jesus,
que ia consumar-se em Jerusalém.
Pedro e os companheiros estavam a cair de sono;
mas, despertando, viram a glória de Jesus
e os dois homens que estavam com Ele.
Quando estes se iam afastando,
Pedro disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias».
Não sabia o que estava a dizer.
Enquanto assim falava,
veio uma nuvem que os cobriu com a sua sombra;
e eles ficaram cheios de medo, ao entrarem na nuvem.
Da nuvem saiu uma voz, que dizia:
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O».
Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou sozinho.
Os discípulos guardaram silêncio
e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.
A cena da transfiguração de Jesus no cimo do monte é relatada nos três evangelhos sinóticos, no entanto, Lucas faz duas referências importantes que não se encontram nos outros. Moisés e Elias estão rodeados de glória e falam com Jesus da sua morte que vai acontecer em Jerusalém. Também Jesus tem que fazer o êxodo da morte para alcançar a glória em que já participam Moisés e Elias.
Reflexão da Palavra
O relato da primeira leitura é descrito como sendo uma visão, “o Senhor disse a Abraão numa visão”. O diálogo estabelecido é sobre a descendência de Abraão. Sem filhos, a promessa que Deus lhe fez quando estava em Ur, está longe de se cumprir. A fé de Abraão no projeto de Deus é total e isso agrada ao Senhor, “Abraão acreditou no Senhor, o que lhe foi atribuído como justiça”. Em Abraão a fé é confiança, capacidade de aguentar, até ao fim, mesmo que venham as trevas, mesmo que os sinais insinuem o contrário.
O diálogo prossegue não já sobre a descendência mas sobre a terra prometida. Também esta promessa tarda em cumprir-se. A fé de Abraão pede um sinal. Deus concede esse sinal ao jeito do que era costume fazer-se quando dois homens estabeleciam uma aliança entre eles, comprometendo a própria vida, “Que me aconteça a mim o que aconteceu a estes animais”.
O dia está a terminar, Abraão vê-se envolvido pelas trevas e dominado por um sono misterioso. As trevas da fé debilitam Abraão porque Deus tarda em cumprir a suas promessas. Mas Deus nunca esquece a sua aliança e vem como fogo e passa entre os animais preparados por Abraão. O fogo é uma das formas habituais na época para falar da presença e ação de Deus, e o sono impossibilita Abraão de ver a Deus, porque ninguém o pode ver.
Reúnem-se neste domingo alguns versículos muito significativos do belo salmo 26. São palavras de confiança e de súplica o que encontramos neste salmo. O salmista confia no Senhor, porque o Senhor é Luz, salvação, fortaleza e baluarte “o Senhor é minha luz e salvação… é protetor da minha vida”. Esta confiança é confirmada pela derrota dos seus inimigos, por isso ele nada teme mesmo que surjam as maiores dificuldades, “a quem hei de temer?”. Apesar disso, não deixa de dirigir a sua súplica ao Senhor para que ele sempre esteja presente na sua aflição, “ouvi, Senhor, a voz da minha súplica,”. No coração do salmista existe a certeza de que o Senhor o “abrigará na sua cabana e o há de esconder no interior da sua tenda”, mesmo que “meu pai e minha mãe me abandonem”. Todo o seu ser procura o Senhor, procura o seu rosto, e ele espera não ser rejeitado. Pode tardar a realização do seu desejo, mas vai acontecer, “espero vir a contemplar a bondade do Senhor na terra dos vivos”.
Fundada por Paulo na sua segunda viagem apostólica por volta do ano 50 d.C., a comunidade de Filipos era formada por judeu, mas sobretudo por gentios. Esta carta foi escrita quando já se encontrava prisioneiro em Roma. Nela agradece a ajuda que os filipenses lhe deram, para os prevenir sobre a possibilidade de serem incomodados por alguns de origem judaica a quem ele chama “cães”, “maus trabalhadores” e “falsos circuncisos”. No texto deste domingo, tirado do capítulo 3 onde Paulo investe contra os falsos mestres e falsos profetas, dando o seu testemunho de adesão a Cristo, por quem diz ele “tudo perdi e considero esterco”.
No final do capítulo, Paulo, convida os filipenses a imitarem-no como ele imita a Cristo e não àqueles que ele chama de “inimigos da cruz de Cristo”, recordando que o fim destes libertinos “é a perdição”, enquanto que a pátria dos que permanecem fiéis a Cristo é o céu, de onde esperam “como salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo miserável, para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso”. Com estas palavras, Paulo, afirma a necessária pertença a Cristo para a salvação. Só na cruz de Cristo se encontra a verdadeira salvação.
Narrando a transfiguração de Jesus, Lucas quer apresentar Jesus, dizer quem ele é. Um pouco antes Pedro revela que Jesus é “o Messias de Deus”. Depois, Jesus faz o anúncio da sua paixão. Logo de seguida apresenta as condições para quem o quer seguir, falando também da sua vinda, “o Filho do homem quando vier na sua glória e na glória do Pai e dos santos anjos”.
No texto deste domingo, Lucas começa por referir que a cena se realiza “uns oito dias depois”. Não são sete, o tempo de uma semana, mas oito que é o tempo de Deus e, no cimo do monte, lugar onde Jesus está mais perto de Deus e, ainda, enquanto rezava. É neste enquadramento que Jesus se vai manifestar.
De facto, o seu rosto e as suas vestes modificam-se e adquirem uma brancura, que significa santidade. Moisés e Elias que falam com Jesus também estão “rodeados de glória”. O diálogo com estes personagens emblemáticos do Antigo Testamento faz crer que a missão de Jesus tem em conta tudo o que foi realizado e anunciado na história de Israel.
O assunto do diálogo é a morte de Jesus que está eminente e se vai realizar quando ele chegar a Jerusalém.
Enquanto isso, Os três apóstolos, Pedro, Tiago e João estão fascinados. Creem estar a sonhar, de resto o texto refere que, “estavam a cair de sono”. Um sono como o de Abraão, porque não podem ver a Deus senão em sonhos e Jesus revela ali o seu rosto divino.
Pedro, como que acordando do sono, quer reter Deus ali, naquele lugar, e permanecer com ele para sempre, como aconteceu no êxodo, quando Deus habitava numa tenda, e diz a Jesus “como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas”. Mas, agora, a tenda, o lugar de Deus com os homens, é o próprio Jesus e a ele ninguém o pode deter enquanto não subir para o Pai. Surge, então, a nuvem, sinal da presença de Deus e ouve-se uma voz que revela quem Jesus é “o Filho predileto” e convida os discípulos a escutá-lo. Confirma-se o que Pedro dissera de Jesus “és o Messias de Deus”.
Começa aqui um retiro de silêncio para os discípulos que só vai terminar no Pentecostes.
Meditação da Palavra
A palavra deste segundo domingo da Quaresma coloca diante de nós a pergunta de Jesus, “quem dizes tu que eu sou?”, que ele faz aos discípulos no caminho para Jerusalém. A resposta vai sendo dada a pouco e pouco. Primeiro é Pedro quem afirma “és o Messias de Deus”. Depois, é Jesus quem o diz de si mesmo que é “o Filho do homem” que virá na sua glória, a mesma glória do Pai. Mais à frente, como se lê no evangelho de hoje, o próprio Pai diz de Jesus que ele é “o meu filho, o meu eleito”.
Ora precisamente o eleito do Pai está a caminho de Jerusalém onde vai “ter de sofrer muito, ser rejeitado… tem de ser morto e ao terceiro dia, ressuscitar”. É isto que Jesus anuncia aos discípulos e é disto que fala com Moisés e Elias no cimo do monte enquanto reza.
Do mesmo modo que Moisés atravessa o deserto para chegar à terra prometida, Jesus faz o seu êxodo no caminho para Jerusalém. Um caminho novo, estreito, difícil, que passa pela morte, mas conduz à verdadeira vida da ressurreição.
Todo o discípulo, se o quer ser de verdade, tem que atravessar o mesmo caminho estreito, “negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-me” (Lc 9, 23). É o caminho estreito da fé, na qual Abraão permanece confiante mesmo no meio da escuridão, quando os sinais insinuam a impossibilidade do cumprimento da promessa, contradizendo a Palavra de Deus que passa como fogo, que é compromisso solene, que é selo de aliança.
É o caminho de Paulo que o leva à prisão em Roma, verdadeira antecâmara do martírio, que não o impede de continuara a reconhecer em Jesus o salvador. E é também o caminho escuro dos filipenses, assaltados por ideias contrárias ao evangelho que pretendem oferecer uma salvação sem Cristo.
Quando a escuridão vem sobre o caminho da nossa vida, deixamos de ver, mas Deus faz sempre ouvir a sua voz. E basta a sua voz a orientar-nos para Jesus, “Escutai-o”, a ele e não a outro, para atravessarmos confiantes a vida toda. Se confiarmos nesta voz, pode vir a noite, a incerteza, a dúvida, que a nossa fé não esmorece porque confia. Podem vir os malvados, podem vir opressores e inimigos, podem vir exércitos, podem declarar-nos guerra que “o meu coração não temerá, ainda assim terei confiança”, como diz o salmista.
Em qualquer situação podemos dizer como Pedro “é bom estarmos aqui”, porque, de facto, é bom quando estamos com Jesus, quando percebemos no seu rosto resplandecente a presença divina do filho de Deus, quando acolhemos a voz que vem do céu, como voz do Pai que nos chama a ser filhos, membros de um povo numeroso, impossível de contar, o povo daqueles que acreditaram e viveram na plenitude da esperança.
Rezar a Palavra
Na noite da minha fé procuro a tua luz, Senhor, procuro o teu rosto glorioso, procuro a tua presença transfigurada. Na escuridão dos dias procuro a tua voz, para subir confiante a Jerusalém, à cruz, ao céu. No sono do entardecer da vida anseio poder dizer “é bom estarmos aqui”, sabendo que está tu comigo, sonhando uma nova aurora. Tu és, Senhor, a minha luz e a minha salvação.
Compromisso semanal
Faço silêncio dentro de mim para ouvir a voz que diz: “Este é o meu Filho… escutai-o”.
Via: aliturgia.com