XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM

Ano B

O amor pelo imperfeito

Deste-me uma alma maior que o corpo e às vezes não sei o que hei de fazer com ela. É alma de gigante que faz sonhar e edificar castelos e fortalezas no alto das montanhas em escarpas defensivas de poder e liberdade. Alma de herói que vence poderosos inimigos que se opõem com exércitos numerosos e bem armados. Alma de artista em criatividade contínua de inesgotável grandeza que do nada faz surgir a beleza superior, que poucos têm a sorte de herdar. Alma de poeta que faz e desfaz versos que cantam a vida e a superam no amor de entrelaçados encantos que jamais a voz humana foi capaz de cantar. Alma de ator que diz o que de mais comum se pode dizer com a voz do silêncio divino que chega sempre mais além. Alma de santo esculpido em insidiosas batalhas que dominam o corpo e elevam o ser ao céu da bem-aventurança eterna. Deste-me uma alma maior que o corpo e às vezes vejo-me pequeno demais para tamanha aventura. Dá-me asas, asas de sonho e de espanto, asas de águia e de anjo, asas de fogo e de esperança, asas que me levem longe, muito longe, aonde o corpo não chega e a alma anseia atormentada pela fome.

LEITURA I Gn 2, 18-24

Disse o Senhor Deus: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, conduziu-os até junto do homem, para ver como ele os chamaria, a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos pelo nome que o homem lhes desse. O homem chamou pelos seus nomes todos os animais domésticos, todas as aves do céu e todos os animais do campo. Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele. Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem um sono profundo e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela, fazendo crescer a carne em seu lugar. Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. Ao vê-la, o homem exclamou: «Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem». Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne

Toda a ação de Deus na criação termina com a afirmação “vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”. Esta afirmação inclui também a criação do homem e da mulher e o projeto de Deus que diz: “o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne”. Aos olhos de Deus tudo é bom.

Salmo 127 (128), 1-2.3.4-5.6 (R. cf. 5)

O salmo 128 apresenta a harmonia familiar de todo aquele que “obedece ao Senhor a anda nos seus caminhos”. Este homem é feliz, vive contente, pode ver o fruto do seu trabalho, a fecundidade da sua esposa e os filhos sentados à volta da mesa, porque é abençoado pelo Senhor.

LEITURA II Heb 2, 9-11

Irmãos: Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos, vemo-l’O agora coroado de glória e de honra por causa da morte que sofreu, pois era necessário que, pela graça de Deus, experimentasse a morte em proveito de todos. Convinha, na verdade, que Deus, origem e fim de todas as coisas, querendo conduzir muitos filhos para a sua glória, levasse à glória perfeita, pelo sofrimento, o Autor da salvação. Pois Aquele que santifica e os que são santificados procedem todos de um só. Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.

A carta aos Hebreus apresenta Jesus como um verdadeiro esposo da humanidade. Por amor à humanidade ele fez-se pobre, participou da pobreza dos homens, experimentou o sofrimento até ao extremo de dar a vida, para elevar a humanidade à sua glória e poder apresenta-la ao Pai, como verdadeira esposa, participante da sua riqueza divina.

EVANGELHO – Forma longa Mc 10, 2-16

Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova e perguntaram-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?». Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio, para se repudiar a mulher». Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu». Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo sobre este assunto. Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério». Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas. Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas.

Os que são como as crianças são também herdeiros do Reino dos Céus porque vivem a relação com Deus e com os outros a partir da aliança de amor em que foram criados. Repudiar não é opção para o amor manifestado pelo Deus criador e pelo Filho redentor. Jesus conhece a comunhão de amor que existe em Deus e entre Deus e o homem, por isso, não pode permitir que as decisões mais importantes da vida sejam fundadas na pobreza de corações vazios e duros, incapazes de amar.

Reflexão da Palavra

O texto de Génesis que é oferecido na primeira leitura, faz parte do segundo relato da criação do Homem. O primeiro relato da criação do Homem (homem e mulher) é da tradição sacerdotal, e é descrito no final do capítulo primeiro de Génesis, em Gn 1,26-31, no sexto dia da criação. No capítulo 2, de tradição Javista, a criação do homem e da mulher é descrita em dois tempos distintos. Primeiro Deus criou o homem do pó da terra, antes da terra ter produzido qualquer arbusto, pois “o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra” e antes de terem surgidos os animais, o homem estava só e Deus reconhece que isso “não é bom”. Deus criou, então, “todos os animais dos campos e todas as aves do céu e conduziu-os até junto do homem”.O homem deu o nome a todos os animais, mas “não encontrou auxiliar semelhante a ele”.

A criação da mulher, para “auxiliar” do homem, surge na sequência de uma decisão divina, com o homem a dormir e como imprescindível e necessária ao homem. De facto, não havia em toda a criação ninguém que fosse semelhante ao homem. O sono do homem, durante o qual Deus realiza a criação da mulher, revela que, esta, não foi criada nem pela vontade do homem nem com a sua colaboração, portanto, não está sob o seu domínio, a sua autoridade nem dependência. Trata-se de alguém que lhe é igual, “é osso dos meus ossos e carne da minha carne”, da mesma natureza, os dois na mesma condição, “estavam ambos nus”.

O salmo 128 é considerado um salmo de peregrinação, é um dos quinze salmos usados durante a subida a Jerusalém para as festas. Tendo em conta o seu conteúdo, muitos entendem que este salmo é continuação do salmo 127, onde se afirma que tudo o que o homem possa fazer, se não o faz na presença de Deus, é inútil, pois é o Senhor quem edifica a casa e é ele quem guarda a cidade. De nada vale ao homem “levantar muito cedo e trabalhar pela noite dentro” porque o Senhor dá o pão aos seus amigos até quando dormem. O Senhor é quem dá tudo ao homem, até os filhos.

O salmo 128, proclama feliz o que, pela obediência, se torna amigo do Senhor. Esse “será feliz” porque o seu trabalho não será inútil e pode comer o pão como fruto do seu trabalho. “Viverá contente”, porque a sua esposa é fecunda e os seus filhos enchem a mesa. Este é um homem abençoado. Percebe-se neste homem a harmonia da vida familiar. O voto final do salmo é que, aquele que sobe a Jerusalém seja abençoado, “o Senhor te abençoe”.

O texto da carta aos Hebreus, lido à luz da primeira leitura e do salmo e na perspetiva do texto evangélico, adquire um sentido mais claro. Jesus é o verdadeiro esposo da humanidade, caída no pecado, afastada de Deus e incapaz de sair da pobreza em que se encontra, pelos seus próprios meios. O Filho de Deus enamora-se da humanidade, mas esta não tem condições para ser apresentada ao Pai como futura esposa. Então Jesus faz-se “inferior aos Anjos”, para conduzir à sua glória aqueles que têm origem em Deus pela criação. Descendo à nossa pobreza e identificando-se connosco, assume em si “a morte em proveito de todos” e, “pelo sofrimento”, seja “coroado de glória e de honra” não apenas ele, mas “conduzir muitos filhos para a sua glória”. Um só morre por todos, para que toda a humanidade atinja a “glória perfeita” e seja apresentada diante de Deus como esposa digna do seu filho que é “pelo sofrimento, o Autor da salvação”.

No evangelho, Jesus é confrontado com uma pergunta feita pelos fariseus, com o intuito habitual de “o porem à prova”. O fundamento da pergunta parece estar numa determinação de Moisés, segundo a qual era permitido ao homem repudiar a sua mulher. Daí, alguns entendem que só o adultério é razão suficiente para o divórcio, enquanto outros entendem que se pode passar uma carta de divórcio com base em qualquer desagrado que o homem encontre na esposa. Não é certo que o texto Dt 24,1 determine uma permissão para o divórcio. Há quem entenda que se trata apenas de uma constatação dessa prática no tempo de Moisés.

Perante a pergunta, Jesus percebe que a questão é colocada sobre a lei. A lei permite ou não permite? Mas, a questão da união entre o homem e a mulher, desde a criação, não decorre da lei, mas da vontade de Deus. Por isso Jesus cita o texto de Génesis que diz “Deus fê-los homem e mulher” e fê-los “à sua imagem e semelhança”, numa unidade em que “os dois serão uma só carne” referindo que, o início da questão começa em Deus e não nos homens. Trata-se de um projeto de Deus em que os homens entram a colaborar, uma vocação que Deus concede ao homem e que este traz dentro de si. A vocação a ser imagem e semelhança com Deus. Ora, Deus é feminino e masculino. A verdadeira razão de ser do homem e da mulher é serem imagem de Deus na unidade e na diversidade.

Não se trata, por isso, de uma relação jurídica que dá a alguém um certificado de propriedade de modo que possa fazer do outro o que se quiser. Ninguém é objeto, propriedade de outro, de modo que possa ser comprado e vendido conforme o desejo do seu dono. Pelo contrário, homem e mulher, criados à imagem de Deus, são livres para sair da casa do pai e construir uma nova casa.

O evangelho acrescenta que os discípulos, em particular, questionaram Jesus sobre o mesmo assunto. E Jesus na sua resposta, aproveita para os fazer entender que a maneira de pensar deles e dos fariseus, não está ao nível do projeto de Deus, mas ao nível do pensamento humano que julga ser impossível ou, pelo menos, difícil uma tal união entre homem e mulher. Ao nível do projeto de Deus a união do homem e da mulher não se entende à margem daquele amor que é sinal da unidade inabalável que existe em Deus e que não permite que um dos dois fique mal, um dos dois seja apagado, anulado, na relação que livremente assumiram. Para este nível de relação é necessária a graça de Deus, não bastam as forças do homem. Só pela graça de Deus se pode entrar no mistério do amor mútuo que, vence as dificuldades, as fragilidades, debilidades e pecados e preserva o bem maior de todos e não apenas o desejo de um.

No final do texto evangélico Jesus utiliza, uma vez mais, o exemplo das crianças para ensinar aos adultos uma nova relação com Deus. O episódio das crianças que querem ir a Jesus, mas são impedidos pelos adultos é aproveitado para dar continuidade à reflexão anterior na perspetiva do reino de Deus. Para um projeto de amor humano ao nível do projeto que Deus tem para a humanidade, é necessário ter um coração de criança capaz de se maravilhar diante da proposta de felicidade que é o reino dos céus. Mas para viver um tal projeto é preciso contar com os obstáculos. Haverá sempre quem, não entendendo o projeto de Deus, se torna obstáculo para outros realizarem a sua vocação. Para realizar o projeto de Deus é necessária a bênção de Jesus, mas também há quem procure a bênção de Jesus para justificar o seu próprio projeto. Por isso, Jesus ensina que nem homens nem mulheres podem ser impedimento para o encontro com ele, mas pelo contrário, um meio que facilita a aproximação, de crianças, homens e mulheres, a Deus.

Meditação da Palavra

Quando o livro do Génesis fala do Homem, criado à imagem e semelhança de Deus, está a falar do Homem, no masculino e no feminino, homem e mulher, aquele ser, diferente de todos os outros que povoam a terra, os mares e o céu. Trata-se de alguém com quem Deus se identifica, com quem colabora, com quem dialoga, e com quem vive, na liberdade, laços afetivos de pertença mútua que geram comunhão. Assim se entende que Deus, depois de criar o Homem, o procure “na brisa da tarde”.

Criado à imagem e semelhança de Deus e criado homem e mulher, o Homem vive a mesma condição “estavam ambos nus”, e a mesma dignidade, tanto no masculino como no feminino. Ou seja, nenhum dos dois tem autoridade sobre o outro porque a origem e a imagem pertencem a Deus e não a eles.

São os dois chamados a viver um com o outro a mesma relação que vivem com Deus. Uma relação de iguais, de colaboração, de diálogo, de liberdade, em laços afetivos de pertença mútua que geram comunhão. Esta é a base sobre a qual se constrói, entre um homem e uma mulher, aquela relação particular, pela qual vale a pena deixar pai e mãe. Mas a relação do homem e da mulher não se esgota na relação matrimonial. Quando Deus vê que “não é bom que o homem esteja só” não quer dizer que não é bom que seja celibatário. O que não é bom é que viva só para si, no egoísmo de si mesmo. Do mesmo modo que, quando diz “serão os dois uma só carne” não quer dizer que um deles perdeu a sua identidade, a sua vontade, a sua liberdade, o seu futuro, que deixou de sonhar e de projetar-se a si mesmo como pessoa. Fala de uma união que favorece o encontro com Deus na busca do sentido da vida e da felicidade, mais além de si próprios e apesar dos obstáculos que se levantem no caminho.

Para isto, o homem pode contar com a bênção de Deus, com a sua graça, com a sua colaboração, para chegar aonde por si mesmo não consegue chegar. É disto que Jesus fala no evangelho quando diz que o Reino de Deus é das crianças e dos que são como elas. O reino dos céus é daqueles que são capazes de se deixar maravilhar com as pequenas coisas que compõe uma relação, como são o trabalho de cada dia, a fecundidade da esposa, os filhos à volta da mesa, e permitir que aí, nas entrelinhas da realidade, desponte a felicidade como um pão de cada dia.

Não há lei que possa impor ao homem ou à mulher esta disponibilidade. Ela não brota de fora, de uma obrigação, mas de dentro, do lugar onde a imagem de Deus se vai tornando cada vez mais nítida. Brota de dentro, do coração. No encontro com Deus, cuja imagem o homem traz no mais íntimo de si mesmo, descobre uma forma de pensar, de agir, de responder ao desejos interiores e de enfrentar os desafios, que se aproxima do projeto de Deus para a humanidade.

Os cristãos, discípulos de Cristo, não são obrigados nem sentem em si o desejo de obrigar ninguém a uma relação, sobretudo se ela não favorece o encontro com Deus, a descoberta do reino e do caminho da santidade. Não há nenhuma lei, dentro ou fora da Igreja, que possa impor a obrigação de viver uma relação que não realiza o cristão humana ou espiritualmente. Isto não significa o laxismo de não assumir com sentido de verdade, responsabilidade, generosidade e colaboração as relações a que se propõe.

Pelo contrário, implica olhar para Cristo e assumir como ele a causa dos irmãos, mesmo que isso implique experimentar o sofrimento e a morte em proveito de todos. Na verdade, Jesus, que hoje vemos “coroado de glória e de honra” experimentou o sofrimento e a morte para “conduzir muitos filhos para a sua glória” não se envergonhando de chamar irmãos àqueles para quem se tornou “o autor da salvação”.

Não se trata, portanto, como Jesus deixa bem claro, de uma questão de sim ou não ao divórcio, mas de sim ou não ao projeto de vida e de amor que Deus tem para a humanidade desde a criação. Este projeto é renovado no sangue de Cristo, o sangue da nova aliança, que pede a todos que sejamos no mundo sinal do seu amor incondicional pela Igreja.

É diante do amor fiel de Cristo pela Igreja que cada um deve avaliar a sua fidelidade ao projeto de Deus que é salvação para toda humanidade.

Rezar a Palavra

Somos teus filhos, Senhor, sentados ao redor da tua mesa. Incansável tu és como o pai que sai pela manhã para trazer o pão de cada dia, fruto do sangue e suor derramados por amor. Sentados à tua mesa de pai, somos filhos saciados pelos bens que nos ofereces sem perguntar se merecemos. Somos filhos sentados à mesa e tu és a mãe que conhece cada um dos que deste à luz e serves em gestos de misericórdia e olhar de ternura o alimento que reconforta a alma. Faz-nos acreditar nesse amor que aconchega. Faz-nos fiéis nesse amor que renova em nós a tua imagem.

Compromisso semanal

Olho os irmãos, homens e mulheres, e vejo neles a tua imagem e a dignidade com que criaste cada um de nós.

Referência: aliturgia.com

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