O moralismo cansado e o sentimentalismo preguiçoso

A partir da advertência de Nosso Senhor de que um cego não pode guiar outro cego, Padre Paulo Ricardo reflete sobre dois extremos da cegueira espiritual que prejudica os cristãos atuais: o moralismo cansado e o sentimentalismo preguiçoso.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 6, 39-45)

Naquele tempo, Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre. Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão. Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio”.

Neste 8.º Domingo do Tempo Comum, lemos o Evangelho de São Lucas, capítulo 6, versículos de 39 a 45. Essa passagem apresenta ensinamentos de Nosso Senhor no Sermão da Planície, dirigidos à multidão e, especialmente, aos discípulos. Diferente de outras passagens em que os ensinamentos aparecem dispersos, aqui Ele os reúne de forma direta. Não se trata de uma controvérsia com fariseus ou escribas, mas de um apelo ao coração dos discípulos. Jesus pergunta: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?”. Quando dita aos fariseus, essa frase denuncia sua hipocrisia; mas, ao ser dirigida aos discípulos, convida-nos a ouvir atentamente a voz do Mestre e a refletir sobre nossa própria cegueira espiritual.

Ao longo de 33 anos como padre, sempre preguei em conformidade com a Igreja e com a Tradição. No entanto, olhando para trás, consigo observar um erro nas minhas pregações de quinze anos atrás: sofria de um moralismo cansado. Por exemplo, diante de um Evangelho como o deste domingo, cujo tema central é o alerta contra a hipocrisia, no passado, eu o transformaria em um discurso duro, quase como um domador, com chicote em punho, tentando controlar os fiéis à força. O problema dessa atitude é que ela impõe um fardo pesado sobre as pessoas, como se a santidade dependesse apenas do esforço humano, sem reconhecer nossa fraqueza e a necessidade da graça de Deus.

Por outro lado, há um erro oposto ao moralismo cansado, muito mais comum hoje em dia: o sentimentalismo preguiçoso. É essa mentalidade que prega a fantasia de que Deus não condenará pessoa alguma, simplesmente porque Ele é bom. Essa forma de interpretar a realidade rechaça todo e qualquer sinal de rigor na lida da fé. Desse modo, com essa visão sentimentalista, não há necessidade de esforço — tampouco de conversão. Esquece-se a luta espiritual, troca-se o compromisso com a santidade pelo comodismo. Em vez de carregar a cruz, a pessoa acomoda-se, relaxa e simplesmente desfruta a vida, confiando em um Deus que tudo aceita, sem exigências.

Temos aqui dois extremos que não correspondem ao ensinamento de Jesus. O moralismo cansado, inspirado na ideia pelagiana, insiste que a santidade depende apenas do esforço humano, sem necessidade da graça divina. Já o sentimentalismo preguiçoso, semelhante à visão de Lutero, acredita que basta confiar na misericórdia de Deus, sem necessidade de esforço ou conversão. Ambos distorcem a verdadeira fé, que exige tanto a graça quanto a resposta do nosso coração.

A verdadeira posição católica está na ação da graça de Deus, que transforma nosso coração pelo Espírito Santo. Se não impedirmos essa obra e cultivarmos uma vida espiritual autêntica, a pequena chama da graça crescerá até se tornar um fogo capaz de gerar verdadeiros atos de amor. Essa transformação acontece por meio da nossa união com Jesus.

Vejamos o Evangelho deste domingo: 

Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio (Lc 6, 43-45). 

O Evangelho ensina-nos que a árvore é conhecida pelos frutos. Para dar bons frutos, precisamos permanecer em Jesus, a videira verdadeira, como Ele mesmo disse no Evangelho de São João (15, 5): “Eu sou a videira; vós, os ramos. Permanecei em mim e dareis bons frutos”. Não adianta exigir que um espinheiro produza uvas nem consolá-lo dizendo que seus espinhos são suficientes. A santidade não vem do esforço isolado nem da acomodação, senão da nossa união com Cristo, que nos transforma e nos torna fecundos em amor, em caridade.

É impensável acreditar que apenas ter fé basta, sem que isso produza amor. Se Deus é amor, então seus filhos devem amar. Assim como cada ser age conforme sua natureza, quem é de Deus deve viver no amor. Mas isso só é possível se estivermos unidos a Cristo, a videira verdadeira. Não é pela força ou imposição que produzimos frutos, senão pela graça que nos transforma quando permanecemos n’Ele. A graça de Deus reformula, por assim dizer, a nossa alma.

Na prática, funciona assim: se desejamos produzir o fruto do amor, precisamos reconhecer nossa condição — somos falhos, egoístas e muitas vezes preguiçosos. Para superar tais limitações, necessitamos de um auxílio divino. E o primeiro auxílio que Deus nos concede é a transformação interior que só a sua graça pode operar em nós. É aquilo que chamamos de “estado de graça”.

Nesse sentido, é preciso insistir: sigamos o caminho da Igreja e dos santos, sem inventar atalhos. Ao longo da história, milhares de santos produziram o fruto do amor, confirmando as palavras de Jesus: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, ou árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é conhecida pelos seus frutos”. Se um ser humano realiza obras divinas, é porque a graça de Deus age nele. Ele foi enxertado na videira que é Cristo, pois somente Jesus pode tornar isso possível.

O primeiro passo, portanto, é estarmos em estado de graça. Estamos às portas da Quaresma — na próxima quarta-feira já é Quarta-feira de Cinzas. Por isso, é fundamental confessarmo-nos, arrependermo-nos dos pecados graves e retomarmos a amizade com Deus. Não podemos nos acomodar no pecado mortal, adiando a confissão como se isso fosse algo secundário, quase sem importância. Nenhuma alma em pecado pode produzir frutos de amor e caridade, assim como uma tartaruga não pode voar. Então, voltemos à Confissão, pois este é o ponto de partida: ter a centelha da graça acesa em nosso coração.

Não adianta exigir luz de uma vela apagada. Para que ela brilhe, precisa de uma centelha. De igual modo, nossa alma precisa da graça divina para reacender a chama do amor. Mesmo uma brasa fumegante pode gerar fogo novamente. Assim, o primeiro passo é simples: confessarmo-nos sinceramente, renunciar ao pecado mortal e voltar ao estado de graça. Esse é o início da nossa união com Cristo.

Agora, depois de reacender a centelha da graça, é preciso transformá-la em chama. Para isso, devemos permanecer em Jesus, como Ele mesmo ensina: “Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não dá fruto em mim, Ele corta, e todo ramo que dá fruto, Ele limpa para que dê mais fruto ainda. Vós já estais limpos por causa da Palavra que vos falei. Permanecei em mim e Eu permanecerei em vós” (Jo 15, 1-4). Esse permanecer acontece por meio do contato constante com a sua Palavra — e isso não como um mero conhecimento acadêmico, senão como uma verdade que ilumina nossa oração. E a Quaresma convida-nos precisamente a intensificar essa vida de oração, pela qual alimentamos a graça que há em nós.

Nesta Quaresma, cultivemos a graça por meio da oração e da leitura espiritual, buscando inspiração na vida dos santos. Peçamos ao Senhor com confiança que venha em nosso auxílio, porque queremos amar; mas, sem a ajuda d’Ele, jamais conseguiremos. 

A Quaresma é tempo de penitência e de conversão; mas antes de abandonarmos o pecado, precisamos compreender por que devemos fazer isso: sem o amor de Cristo, não há motivação verdadeira para essa mudança. Quem ama de verdade é capaz de deixar tudo. Por isso, antes de qualquer coisa, permaneçamos em Jesus, pois só unidos a Ele podemos viver o Evangelho e dar bons frutos. Por isso, elevemos nossa súplica o Senhor:

Senhor Jesus, às portas da Quaresma, suplicamos a graça da conversão. Derramai em nossos corações o Espírito Santo, para que a chama do vosso amor acenda-se e produzamos frutos de caridade para convosco e para com nossos irmãos. Sem o vosso auxílio, nada podemos, nada somos. O amor divino só brota de uma árvore divina, e somente unidos a vós, verdadeira videira, daremos frutos que vos agradem. Livrai-nos, Senhor, do moralismo estéril que tenta produzir frutos sem estar unido a vós e do sentimentalismo preguiçoso, que nos faz desistir da santidade. Dai-nos o dom de permanecer em estado de graça, alimentados pela vossa Palavra e pelo Espírito Santo, para que, transformados, demos os frutos que esperais de nós. Obrigado, Senhor, por ouvirdes nossa súplica. Que a Virgem Santíssima guie-nos neste caminho quaresmal, libertando-nos de todo desânimo, a fim de que, renovados, celebremos convosco a Páscoa eterna, permanecendo sempre unidos a Vós. Amém.

Via: padrepauloricardo.org

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